A amiga genial, primeiro tomo de sua Série Napolitana, se volta para a infância e a adolescência não de uma, mas de duas mulheres fortes. Elena Greco, a narradora, decide contar as memórias de sua vida ao lado de Raffaella Cerullo – Lina para todos e, só para ela, há seis décadas, Lila. Resolve fazê-lo com todo detalhe possível, em contraposição ao sumiço total de Lila: enquanto ela apaga seus vestígios, Elena os recupera.
“Vamos ver quem ganha desta vez”, escreve Elena nesse prólogo, que introduz a dinâmica de sua relação com Lila, conduzida sobre a admiração e a ambição de sobrepujar a amiga mais destemida (e, depois, mais desejada).
Aqui, é justo fazer um parêntese e retornar à autora. Diante da fama internacional que ganhou com a série, parece ocioso informar que seu nome deve ser pseudônimo, que ela só dá raras entrevistas por e-mail e mediadas por seus representantes e que já se questionou até se ela seria uma só pessoa, ou se seria mulher.
Na conversa com os Ferri, a autora responde a essas questões. De tudo o que diz, porém, o mais relevante é sua convicção de que a lacuna sobre si se preenche ou deveria se preencher pela sua ficção.
De fato, a experiência de Elena e Lila e da extensa gama de personagens que as acompanham é tão rica que garante sua autonomia. E é em grande parte essa trama cheia de acontecimentos o motivo do sucesso da série.
Se a uns pode parecer vetusta sua prosa realista e sem formalismos, cabe notar que a precisão da linguagem como instrumento de poder, em si um tema do romance, se reproduz na escrita de Ferrante, modulada para seguir o amadurecer de Elena e Lila.
Cotidiano
Sem fazer propriamente um romance histórico ou sociológico, a autora localiza o cotidiano quase miserável das jovens Greco, filha de um contínuo da prefeitura, e Cerullo, filha do sapateiro, num subúrbio napolitano no pós-guerra em que a violência é disseminada e naturalizada.
Pais batem em filhos, objetos voam pela janela, há pedradas e facadas a mancheias. E, no entanto, o desafio intelectual, a superação dos objetivos escolares se impõe como o aspecto mais crucial da subsistência das meninas.
Para todos, Lila é superior: é mais corajosa e vence provas sem mais esforço que o de contrair os olhos como uma ave de rapina. Torna-se objeto de ódio no bairro e ganha de Elena o assombro competitivo que nutrirá os próprios sucessos da narradora.
Também Ferrante se dedica a resolver o desafio intelectual da menina que foi, fazendo em A amiga genial ao mesmo tempo uma glosa e uma ruptura do gênero no qual seu livro se enquadra, o do romance de formação.
Merecimento
Na convenção do gênero, se o protagonista é masculino, ao fim do livro sai de casa para estudar. Se, ao contrário, a trama é protagonizada pela mulher, é o casamento que a tira do lar paterno. No romance da formação de Elena e Lila, há um pouco dos dois, e resta ao leitor se inquirir sobre qual das duas meninas seria mais merecedora do adjetivo do título.
A resposta a isso vem nominalmente quase ao fim desse primeiro volume. Mas também ela é acessória, senão dúbia – e a dúvida pode ser, ensina Ferrante com seus personagens, entre os quais se inclui, um benefício. (Folhapress)
A AMIGA GENIAL
. De Elena Ferrante
. Biblioteca Azul
. 336 páginas, R$ 44,90