Zona da crueldade

O escritor britânico Martin Amis volta a focalizar o Holocausto em seu novo romance. Judeu e nazistas são narradores da trama, que se passa diante do horror da era hitlerista

por 13/06/2015 00:13
Alfred A. Knopf/divulgação
Alfred A. Knopf/divulgação (foto: Alfred A. Knopf/divulgação)
Juliana Cunha



“Se o que estamos fazendo é tão bom, por que cheira tão mal?”, pergunta um dos narradores de A zona de interesse, nova obra do inglês Martin Amis. Aos 65 anos, Amis, um dos escritores de língua inglesa mais reconhecidos da atualidade e autor de 14 romances, recria sua linguagem a cada livro.

Essa sátira realista sobre o Holocausto não é sua primeira incursão por Auschwitz: em Seta do tempo (1999, esgotado no Brasil), os eventos transcorrem de trás para diante, de modo que o campo parece fabricar judeus em vez de dizimá-los.

Auschwitz fabricou e dizimou judeus. A Shoá (como os judeus nomeiam o Holocausto, um termo que tem origem no sacrifício religioso de animais) organiza a identidade judaica contemporânea, assim como a diáspora.

Casado com a escritora americana Isabel Fonseca, de origem judia, Amis achava que seu segundo livro sobre o extermínio precisava compensar o primeiro em pelo menos um aspecto: “Sentia que devia trazer um narrador judeu, isso era fundamental para que o romance fosse coerente”, contou.

TRÊS NARRADORES

O narrador judeu é Szmul, um polonês encarregado de arrancar dentes de ouro dos mortos, descartar corpos e limpar câmaras de gás, entre outros serviços nauseantes. Ele se soma a outros dois narradores: Golo Thomsen, um oficial nazista de segunda linha que se considera um dos muitos nazi tentando boicotar o sistema; e Paul Doll, um nazista de alta patente.

Hannah Doll, mulher de Paul e obsessão de Golo, une os dois primeiros narradores. A impressão é que Szmul empalidece diante deles. Membro do Sonderkommando – grupo de prisioneiros selecionados para executar serviços que os alemães não estavam dispostos a desempenhar –, ele carece de função interna no romance e dispara clichês como “preciso de alguma coisa além de palavras”. A passagem mais exasperante é aquela em que Szmul compara o campo de concentração a um espelho mágico que “revela a alma”.

MASSACRE

Golo é um personagem mais multifacetado. Com um massacre sistemático debaixo de seu nariz, uma mulher é sua principal preocupação. Ele transita pelo discurso nazista e se beneficia do esquema sem se envolver afetivamente com o regime. Acha que faz o que pode com seus pequenos atos de boicote, mas descreve a si mesmo e a mulher que ama como arianos perfeitos, com todos os atributos físicos valorizados pelo nazismo.

Já Paul vocaliza a ideologia nazista mais rasa e doentia. Pragmático e dado a lógicas tortas, ele é capaz de sentar-se num concerto cheio de oficiais alemães enquanto calcula o tempo necessário para matar todos eles com gás asfixiante. Em dado momento, justifica a crueldade de seu trabalho com o argumento de que “se tivessem a menor chance, os judeus fariam o mesmo conosco, como todos sabem”.

Assim como Coração das trevas não nomeia o Congo e Harry Potter não nomeia Voldemort, A zona de interesse não cita explicitamente Auschwitz ou Hitler. Para além de uma questão estilística – o führer funciona como uma influência fantasmagórica, tão evidente que não precisa ser evocada –, a escolha foi uma questão de estômago: “Depois de toda a pesquisa que fiz para o livro, a ideia de escrever o nome de Hitler repetidas vezes me pareceu demasiada violenta comigo mesmo”, explica Amis. (Folhapress)

A ZONA DE INTERESSE
. De Martin Amis
. Companhia das Letras
. 392 páginas, R$ 47







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