Vozes do mundo

Destaque da poesia contemporânea brasileira, Eucanaã Ferraz lança Escuta. Versos urbanos do carioca remetem à obra de Drummond

por 13/06/2015 00:13
 Bel Pedrosa/divulgação
Bel Pedrosa/divulgação (foto: Bel Pedrosa/divulgação )
André di Bernardi Batista Mendes


 
Eucanaã Ferraz é um dos poetas mais importantes do Brasil neste século 21. No recém-lançado Escuta, ele aprimora a sua oficina de luzes. A morte é um dos temas do livro – suicídios, assassinatos e guerras surgem por vezes em cenas que parecem saídas de noticiários –, como também a memória e estados afetivos extremos. Cabe nisso tudo o perigo do desejo que brota e insiste no peito humano. Frequências e sinais variados, vindos de não se sabe onde. O mundo é profundo demais.

Em seus poemas decididamente urbanos, ouvimos ecos de Carlos Drummond de Andrade, entre instantes e espantos, com os mesmos voos, a mesma rispidez (“Legítima estupidez a minha (a dos que amam):/ deixar o mel à tona.// Melancolia previsível/ que agora moscas o comam.”), o mesmo cuidado, a mesma atenção diante de coisas diferentes. O mesmo périplo (sem sentido) de delícias e encontros perto da grandeza, dentro da força da poesia.

E o mesmo respeito. Eucanaã tenta desvendar os mistérios desse nosso itinerário, desse nosso “breve deserto”. O poeta tenta preencher, propor e impor, com delicadeza, com as palavras, algum sentido àquele sem sentido. A poesia de Eucanaã Ferraz reacende o traste.

Poetas costumam brincar com fogo diante de vertentes simultâneas. Vida é sinônimo de febre e o poeta é protagonista de si mesmo. A obra de Eucanaã, contudo, não aceita e não sabe de ensaios. Talvez, por isso tudo, a urgência de versos feitos “à memória de todos os amantes/ mortos em combate”. Não é preciso dizer mais nada.

Os poetas desconhecem o significado de rumos. Eucanaã emula como pode e reinventa purezas e verdades para signos cansados. Não existem matérias-primas para o surgimento dos versos – é simplesmente tudo: cores, vibrações, lirismos, ironias, aniquilamentos, humores, árvores, dores. Eucanaã é dono de um lirismo próprio e projeta seu canto singular até um alto lugar.

Ele empresta vozes a tudo que invade, que brutaliza, que aponta, que engorda e faz crescer, até o ocaso que ultrapassa o natural, onde moram, aonde descansamos de todos os perigos. O poeta diz: “Meu nome não sou agora,/ moro no mundo futuro./ Meu pai me deu esse nome/ sem que eu pudesse fazê-lo”.

Bússola solar, Eucanaã joga um jogo, o melhor deles, sem descuidar, com volteios e contradanças, numa situação no mínimo instável. Ele questiona, desqualifica, desmonta-se. Busca com a literatura uma forma inteligente, inteligível de dissolução (ele inventa “nuvens-nada”, um “eu-minguante”). A poesia avança sem rumo até a incerteza de outras hipóteses, “na direção de outros nomes”. O poeta é aquele que vê. O poeta é aquele que escuta.

Quando escreve, cheio de respeito e compaixão, por exemplo, cadeira de madeira, o poeta relembra a dor das árvores. Deita debaixo dessa sombra antes projetada, esse lugar feito de memória. O poeta senta naquela cadeira e reverencia o fato de não existirem posições possíveis para o descanso.

Pássaros cantam, Eucanaã escuta e desdecifra para ouvir a essência do bicho inteiro, para celebrar o voo, esse milagre restrito aos seres maviosos. Tudo que move é saliente.

Eucanaã, isso é importante, tem a vida nas mãos e busca, ao escrever – com uma delicadeza estranha –, o afastamento de seus inúmeros fios, de suas urdiduras; esse tipo de coisa, essa espécie de paradoxo que só pode a poesia. Daí tanto mistério. E tanta beleza explícita. E tanto fado. E tanto samba. (Moto-contínuo, a poesia fulmina, e vai deixando pegadas por onde passa.) Eucanaã reclama das bibliotecas vazias, de “museus demais e de tudo”, dos “mísseis no céu de maio”.

O poeta é, no caos, a pior das hipóteses. A vida é feita de traços, de cores, de umidade máxima, mas é ao mesmo tempo insuficientemente justa, desordeira de dobras e mais dobras. A vida quer e requer, na curva das horas. Tudo é texto, amor e temor, pausa e trabalho, o que compensa e o que não vale a pena. O medo de quem morre deveria ser o mesmo de quem mata. Ninguém nasce para socos, mas só para o normal das tempestades.

Pois a alegria ganha também posição de destaque no livro de Eucanaã Ferraz. Até a capa, rosa forte, tem muito a ver com essa falácia que o poeta desmonta, verso a verso, para melhor dizer das curvas de uma estrada cheia de espinhos. Ele vai atrás de algo bem maior, algo mais profundo e forte, talvez, aquela luz reincidente que se esconde na poesia e nos caminhos das pernas e do corpo mais que físico, dentro do real.

Escuta é um livro feito para Reis Momos, trapezistas, feito para a dona Baratinha, que só quer amor. Trata-se um livro feito com carinho para os incompreendidos pombos, que gostam de voar entre nós, trata-se de um livro feito para as rosas e para os bobos. Eucanaã deixa pistas, armadilhas. Descobrir o que cada poema quer levaria anos.

Eucanaã provoca. A alegria, não se pode com ela, não podemos, até sentirmos juntos coisas de um certo futuro quase viável. Certas intuições duram para o além dos relógios e das horas, “no teu limite humano a extensão indizível/ do que outros chamariam espírito”. Mas são os momentos ínfimos (belos, perfeitos) que inutilmente tecem cordas e elos de continuidade. Momentos minimamente traduzíveis. Talvez por isso, e só por isso, ainda estamos. O poeta é apenas uma formiga, é uma borboleta que leva para os lugares um balde de flores incendiárias.

Eucanaã sabe traduzir o silêncio de dias perfeitos, de dias horríveis, todos eles frágeis, quebradiços ao menor ruído. Estamos no mesmo barco, no mesmo filme de cinemas. Ele confessa: “Você me subiu à cabeça – forças/belezas alegrias me pertencem”. Que assim seja, então.

Os poetas sofrem de certa incapacidade para conciliar tantos absurdos. Espicaçar, eis a função da poesia. A vida é feia; a vida é linda. Eucanaã parece dizer: “aceito tudo”, até a miséria. A vida é feia e suja; ela é perfumada, diriam os apaixonados. O poeta liquidifica e sabe de pedras quando existem pedras, e sabe de flores quando é tempo. As pessoas guardam palavrinhas num baú de sortes (medo, mortes, dramas, amor e amores). Os poetas (e os amantes) sabem a chave. E mais não dizem.


CERTO

Hoje quero te falar de permanecer vivo.

Observa que há árvores velhas e a juventude é longa;
perde ao menos uma hora restaurando os azulejos brancos
da tua infância; sobretudo abre as janelas que dão para o céu
de Nova Friburgo, terra onde as terras são principados
de toda a gente e à vista nua divisamos planetas
em varandas alvoroçadas por malmequeres só de luz;
hoje quero te falar de junhos nervosos de tantas alegrias.

Se tudo te parece frágil é verdade é frágil tudo;
mas venho te dizer que tudo permanecerá vivo
nesta hora em que te digo agora.

. De Eucanaã Ferraz


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VIDA E OBRA


Eucanaã Ferraz nasceu no Rio de Janeiro, em 1961. É autor de Martelo (1997), Desassombro (2002) – que ganhou o Prêmio Alphonsus Guimarães, da Biblioteca Nacional, de melhor livro de poesia de 2002 – e Cinemateca (2008), entre outras obras. O carioca é professor de literatura brasileira na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Com o livro Sentimental, ganhou o Prêmio Portugal Telecom em 2013.



 ESCUTA

. De Eucanaã Ferraz
. Companhia das Letras
. 136 páginas, R$ 34,90

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