Mulher de barro, no entanto, lançado no Brasil pela Editora Alfaguara, nasceu de um estranho sonho da escritora de 77 anos, constantemente lembrada para o Prêmio Nobel. Joyce ficou assombrada pela figura de uma mulher malvestida e com pesada maquiagem, que se assemelhava à lama.
Surgiu assim Meredith Ruth Neukirchen, mulher bem-sucedida em sua carreira acadêmica e que se dedica fervorosamente ao trabalho. Até que, durante uma viagem ao Norte do estado de Nova York, seu trágico passado aflora acidentalmente. Meredith é obrigada a lidar com traumáticas lembranças da infância (quando foi quase afogada em um lodaçal pela mãe natural, uma doente mental e fanática religiosa), que a tornam surpreendentemente frágil e incapaz de lidar com as pressões da atualidade.
Mulher de barro confirma o talento de Joyce Carol Oates na criação de um texto intimista que reforça o suspense psicológico. A seguir, a autora fala sobre o novo livro.
Este livro teve uma origem diferente da gênese da maior parte dos seus romances. Escrever é a melhor maneira de resolver este sonho perturbador? A senhora reconhece neste Mulher de barro um aspecto de si própria?
A inspiração foi um sonho vívido, alucinatório, de uma mulher cujo rosto estava levemente coberto de lama, sentada numa mesa semelhante a uma mesa de conferência. A imagem me perseguiu durante anos até eu criar todo um mundo ficcional para incluí-la.
O processo de decodificação produziu um dos seus romances mais pessoais, autobiográficos e profundamente sentidos. Como analisa este livro hoje?
Não é possível para um romancista analisar seu próprio trabalho. Mas talvez Mulher de barro seja um explorar da duplicidade de muitas das nossas vidas – nosso self público, que pode ser um sucesso, e nosso self particular, que reside primariamente na memória. Muitas pessoas que vêm de um meio economicamente modesto e alcançam um certo sucesso em suas carreiras podem se lembrar de uma infância muito diferente: o meio de onde vieram é muito diferente das suas vidas atuais.
A senhora acredita que a linha que separa o real do surreal possa ser surpreendentemente tênue? Poderia esclarecer a distinção entre realismo e o surreal na sua ficção?
Em nossas vidas de sonho e em nossas vidas interiores, mudamos rapidamente do real para o surreal, do que é verdade para o que é imaginado. Mulher de barro é um romance de realismo psicológico, mas não é um romance simplesmente naturalista.
É fato que nós não conseguimos escapar do nosso passado?
Precisamos aprender a assimilar nossos eus passados ao presente. É um erro tentar negar o passado, mas o indivíduo também não deve ficar obcecado por ele. No caso da heroína de Mulher de barro, na verdade, ela esqueceu uma boa parte da sua vida, é um caso extremo de negação do passado, e essa amnésia permitiu a ela concentrar-se em sua carreira. Mas, depois que atinge o sucesso, as defesas criadas por sua amnésia começam a se dissolver, deixando-a vulnerável.
Seu trabalho, em parte, é dedicado à investigação dos mitos americanos. A senhora acredita que exista uma relação particular com a morte ou essa atração pela morte é comum em todas as sociedades?
É uma pergunta difícil de responder. Há uma distinção entre a ideia da morte – a Morte – e a realidade da morte de fato, a morte dos indivíduos, por exemplo.
A senhora acredita que os escritores tenham uma obrigação moral para com seus personagens e seus leitores?
Os artistas são livres para exercitar sua imaginação como desejarem. Não deve haver imposições quando se trata de imaginação. O que é moral para alguns pode ser imoral para outros. Não devemos ditar regras, salvo quando estamos numa posição de responsabilidade pública – caso dos juízes, dos médicos.
A arte deveria nos tornar melhores, nos dar lições de moral, trabalhar no sentido do bem social, ou existe para nosso prazer?
Acho que isso é verdade. No entanto, alguns artistas podem negar essa noção, reivindicar a liberdade absoluta da imaginação. E algumas pessoas diriam que a arte é simplesmente entretenimento, distração.
Até que ponto é importante a perspectiva do narrador? Existe uma relação entre perspectiva e verdade?
Na ficção, a perspectiva do narrador é crucial. Mas, com frequência, não é inteiramente confiável, de maneira que o leitor precisa tirar sua conclusão, como na vida.
A senhora compara a escrita de diferentes vozes ou trabalha em uma direção, sente a irrealidade e então tenta algo novo?
No início de um romance, testo diversas vozes e, muitas vezes, é um procedimento lento. À medida que escuto e presto atenção a essas vozes, tento determinar o quão original, nova, imperiosa, singular e interessante a voz será; às vezes, há mais de uma em Mulher de barro, a voz de Meredith vacila com suas vozes passadas à medida que seus selves do passado pressionam a sua personalidade atual para serem ouvidos. Sob muitos aspectos, a voz de Meredith é a minha própria: ela é professora como eu e interessada nas investigações morais, metafísicas e filosóficas que sempre me fascinaram. Como Meredith, contudo, não sei as respostas – e ofereço conclusões interessantes e polêmicas.
Por que é crucial para Meredith retornar à sua casa (adotada) e às suas raízes, ao lado de uma madrasta ainda viva e que a ama?
Ali, na calma relativa de uma pequena cidade distante da famosa universidade da qual é presidente, ela consegue descansar, curar-se, retomar as forças e depois voltar ao seu trabalho. Acredito firmemente no rejuvenescimento do espírito mesmo depois de um esgotamento nervoso extremo. Tenho presenciado isso – não é somente uma ideia ou tema de um romance, mas a transcrição de algo muito real, inspirador e autêntico. Mulher de barro trata do confronto com o abismo interior – o colapso de uma pessoa pública – e o posterior renascimento. Sentimos que, a partir de agora, Meredith será uma pessoa mais forte e uma presidente de universidade ainda mais forte.
MULHER DE BARRO
. De Joyce Carol Oates
. Editora Alfaguara
. 504 páginas, R$ 54,90