Acerto de contas

Em Mulher de barro, a autora norte-americana Joyce Carol Oates faz do passado e da memória a %u2018cura%u2019 para os traumas impostos pela vida

por 06/06/2015 00:13
JEFF ZELEVANSKY/AP
JEFF ZELEVANSKY/AP (foto: JEFF ZELEVANSKY/AP)
Ubiratan Brasil



A ficção da escritora americana Joyce Carol Oates é, muitas vezes, firmemente calcada na realidade. Foi assim no já clássico conto Where are you going, where have you been? (1966), inspirado em um serial killer do Arizona, e também em Black water (1992) e Blonde (2000), recriação de incidente na pequena ilha de Chappaquiddick (em 1969, a secretária do senador Edward Kennedy morreu afogada depois que o carro dele caiu de uma ponte) e da vida de Marilyn Monroe, respectivamente.

Mulher de barro, no entanto, lançado no Brasil pela Editora Alfaguara, nasceu de um estranho sonho da escritora de 77 anos, constantemente lembrada para o Prêmio Nobel. Joyce ficou assombrada pela figura de uma mulher malvestida e com pesada maquiagem, que se assemelhava à lama.

Surgiu assim Meredith Ruth Neukirchen, mulher bem-sucedida em sua carreira acadêmica e que se dedica fervorosamente ao trabalho. Até que, durante uma viagem ao Norte do estado de Nova York, seu trágico passado aflora acidentalmente. Meredith é obrigada a lidar com traumáticas lembranças da infância (quando foi quase afogada em um lodaçal pela mãe natural, uma doente mental e fanática religiosa), que a tornam surpreendentemente frágil e incapaz de lidar com as pressões da atualidade.

Mulher de barro confirma o talento de Joyce Carol Oates na criação de um texto intimista que reforça o suspense psicológico. A seguir, a autora fala sobre o novo livro.


Este livro teve uma origem diferente da gênese da maior parte dos seus romances. Escrever é a melhor maneira de resolver este sonho perturbador? A senhora reconhece neste Mulher de barro um aspecto de si própria?

A inspiração foi um sonho vívido, alucinatório, de uma mulher cujo rosto estava levemente coberto de lama, sentada numa mesa semelhante a uma mesa de conferência. A imagem me perseguiu durante anos até eu criar todo um mundo ficcional para incluí-la.

O processo de decodificação produziu um dos seus romances mais pessoais, autobiográficos e profundamente sentidos. Como analisa este livro hoje?

Não é possível para um romancista analisar seu próprio trabalho. Mas talvez Mulher de barro seja um explorar da duplicidade de muitas das nossas vidas – nosso self público, que pode ser um sucesso, e nosso self particular, que reside primariamente na memória. Muitas pessoas que vêm de um meio economicamente modesto e alcançam um certo sucesso em suas carreiras podem se lembrar de uma infância muito diferente: o meio de onde vieram é muito diferente das suas vidas atuais.

A senhora acredita que a linha que separa o real do surreal possa ser surpreendentemente tênue? Poderia esclarecer a distinção entre realismo e o surreal na sua ficção?

Em nossas vidas de sonho e em nossas vidas interiores, mudamos rapidamente do real para o surreal, do que é verdade para o que é imaginado. Mulher de barro é um romance de realismo psicológico, mas não é um romance simplesmente naturalista.

É fato que nós não conseguimos escapar do nosso passado?

Precisamos aprender a assimilar nossos eus passados ao presente. É um erro tentar negar o passado, mas o indivíduo também não deve ficar obcecado por ele. No caso da heroína de Mulher de barro, na verdade, ela esqueceu uma boa parte da sua vida, é um caso extremo de negação do passado, e essa amnésia permitiu a ela concentrar-se em sua carreira. Mas, depois que atinge o sucesso, as defesas criadas por sua amnésia começam a se dissolver, deixando-a vulnerável.

Seu trabalho, em parte, é dedicado à investigação dos mitos americanos. A senhora acredita que exista uma relação particular com a morte ou essa atração pela morte é comum em todas as sociedades?

É uma pergunta difícil de responder. Há uma distinção entre a ideia da morte – a Morte – e a realidade da morte de fato, a morte dos indivíduos, por exemplo.

A senhora acredita que os escritores tenham uma obrigação moral para com seus personagens e seus leitores?

Os artistas são livres para exercitar sua imaginação como desejarem. Não deve haver imposições quando se trata de imaginação. O que é moral para alguns pode ser imoral para outros. Não devemos ditar regras, salvo quando estamos numa posição de responsabilidade pública – caso dos juízes, dos médicos.

A arte deveria nos tornar melhores, nos dar lições de moral, trabalhar no sentido do bem social, ou existe para nosso prazer?

Acho que isso é verdade. No entanto, alguns artistas podem negar essa noção, reivindicar a liberdade absoluta da imaginação. E algumas pessoas diriam que a arte é simplesmente entretenimento, distração.

Até que ponto é importante a perspectiva do narrador? Existe uma relação entre perspectiva e verdade?

Na ficção, a perspectiva do narrador é crucial. Mas, com frequência, não é inteiramente confiável, de maneira que o leitor precisa tirar sua conclusão, como na vida.

A senhora compara a escrita de diferentes vozes ou trabalha em uma direção, sente a irrealidade e então tenta algo novo?

No início de um romance, testo diversas vozes e, muitas vezes, é um procedimento lento. À medida que escuto e presto atenção a essas vozes, tento determinar o quão original, nova, imperiosa, singular e interessante a voz será; às vezes, há mais de uma em Mulher de barro, a voz de Meredith vacila com suas vozes passadas à medida que seus selves do passado pressionam a sua personalidade atual para serem ouvidos. Sob muitos aspectos, a voz de Meredith é a minha própria: ela é professora como eu e interessada nas investigações morais, metafísicas e filosóficas que sempre me fascinaram. Como Meredith, contudo, não sei as respostas – e ofereço conclusões interessantes e polêmicas.

Por que é crucial para Meredith retornar à sua casa (adotada) e às suas raízes, ao lado de uma madrasta ainda viva e que a ama?

Ali, na calma relativa de uma pequena cidade distante da famosa universidade da qual é presidente, ela consegue descansar, curar-se, retomar as forças e depois voltar ao seu trabalho. Acredito firmemente no rejuvenescimento do espírito mesmo depois de um esgotamento nervoso extremo. Tenho presenciado isso – não é somente uma ideia ou tema de um romance, mas a transcrição de algo muito real, inspirador e autêntico. Mulher de barro trata do confronto com o abismo interior – o colapso de uma pessoa pública – e o posterior renascimento. Sentimos que, a partir de agora, Meredith será uma pessoa mais forte e uma presidente de universidade ainda mais forte.



MULHER DE BARRO
. De Joyce Carol Oates
. Editora Alfaguara
. 504 páginas, R$ 54,90



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