Um certo OLHAR

Cumprindo o papel próprio da cultura de afirmar outras visões históricas, o Festival de Arte Negra comemora 25 anos num contexto de avanços (e expectativas ainda não cumpridas) na afirmação da igualdade racial

por 30/05/2015 00:13
LEANDRO COURI/EM/D.A. PRESS
LEANDRO COURI/EM/D.A. PRESS (foto: LEANDRO COURI/EM/D.A. PRESS)
Leônidas Oliveira e Françoise Jean



2015 é para nós, cidadãos brasileiros, um ano carregado de simbologia. Afinal, a nossa Nova República atingiu a maturidade dos seus 30 anos, colhendo conquistas a serem comemoradas, embora admitamos haver, ainda, muitas promessas e expectativas a serem cumpridas. 2015 marca também os 20 anos da primeira edição do Festival de Arte Negra de Belo Horizonte, carinhosamente conhecido como FAN. E o que há de comum entre esses dois eventos, essas duas datas que merecem ser juntamente rememorados? O processo brasileiro de redemocratização, iniciado formalmente com a Nova República, em 1985, propiciou a ampliação da noção de cidadania e, por conseguinte, dos direitos fundamentais, individuais e coletivos. Com isso, conceitos como o de pluralismo, diversidade cultural, memória e verdade histórica, entre outros, passaram a integrar o rol dos direitos fundamentais garantidos pela Constituição brasileira. Isso potencializou a visibilidade de novas identidades coletivas e a emergência de novos sujeitos políticos que, problematizando a ideia de uma nação homogênea, passaram a exigir a efetivação do direito à diferença, à diversidade étnica, sexual, religiosa, cultural e territorial que compõe a nação brasileira. Foi neste contexto de luta política e ampliação de direitos que, em 1995, a então Secretaria Municipal de Cultura promoveu o primeiro Festival de Arte Negra em Belo Horizonte, capital do segundo maior estado brasileiro em densidade populacional negra. Com o objetivo de conhecer e dar visibilidade às diversas vertentes culturais de matriz africana presentes na cidade e visando discutir as questões relativas à sua integração de forma sistemática nas políticas públicas municipais, o FAN reuniu artistas e estudiosos do continente africano e do Brasil para a realização de shows, oficinas, mostras, conferências e seminários.

Entre as atividades, destacou-se a eleição de comunidades negras para se tornarem oficialmente Patrimônio Cultural do Município. Utilizando o instrumento do tombamento, a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Jatobá, manifestação banto-católica, e o terreiro de candomblé Ilê Wopo Olojukan foram preservados no cenário belo-horizontino, que até então abrigava apenas bens tombados referentes à cultura de origem europeia e à religiosidade católica.

No cenário das políticas culturais para o setor, o Plano Municipal de Promoção da Igualdade Racial (2009) constituiu avanço definitivo da cidade de Belo Horizonte na extensão dos direitos a toda a sociedade. Trata-se do efetivo reconhecimento pelo poder público municipal de que somente com políticas afirmativas alcançaremos uma sociedade mais justa e igualitária. Aliado a isso, o reconhecimento de comunidades negras como patrimônio da cidade, no contexto do primeiro FAN, pode ser considerado um marco na política de promoção e valorização da cultura em Belo Horizonte. Isso porque, ao partir de entendimento ampliado de patrimônio cultural, já demonstrávamos, na década de 1990, a preocupação com a preservação da diversidade de experiências sociais vivenciadas pelos diversos grupos que compõem a cidade. Mais do que isso, o tombamento de lugares habitados por grupamentos até então excluídos de qualquer reconhecimento, ignorados pela cidade e tidos como desprovidos de cultura ou como detentores de cultura inferior, demonstrou a clara relação existente entre as políticas de proteção ao patrimônio cultural e as lutas dos movimentos sociais pelo reconhecimento de direitos e, mais particularmente, de “direitos culturais”.

AFIRMAÇÃO

Entendemos, portanto, que a cultura não é mero coadjuvante no processo de amadurecimento político da sociedade brasileira e de inclusão dos mais diferentes sujeitos sociais na prática da cidadania. Nesse sentido, festivais como o FAN, mais do que celebrar a arte e a cultura negras, têm a importante função de promover a afirmação de outras visões da nossa história, visões essas capazes de incorporar a diversidade de temporalidades históricas, vivências culturais e grupos étnicos responsáveis pelo ethos fundamental da cultura brasileira. Foi assim com o FAN de 1995, ao promover o tombamento de comunidades negras. Em 2015, propomos mais um avanço nessa longa caminhada rumo à promoção da igualdade racial. Encontro – esse é o tema do Fan 2015. Encontro com a diversidade, com o singular, com o outro. Para consolidar tais encontros, promoveremos o contato com as múltiplas faces da nossa cultura. Junto ao FAN, a Fundação Municipal de Cultura dará início aos trabalhos do Registro Imaterial das Comunidades Quilombolas de Belo Horizonte. Embora poucos saibam – pois são lugares invisíveis no contexto maior da cidade – existem, em Belo Horizonte, “territórios negros”. Esses territórios, também conhecidos por quilombos urbanos, são conformados por grupos étnicos que têm na religiosidade, na música, na dança e no trabalho coletivo as práticas que proporcionam a base da sua existência como grupo. São, assim, verdadeiros “territórios culturais”. Até o momento, foram identificados três em Belo Horizonte: Quilombo dos Luízes, no Bairro Grajaú; Quilombo de Mangueiras, na região do Bairro Ribeiro de Abreu; e a comunidade Manzo Ngunzo Kaiango, no Bairro Santa Efigênia. Embora o conceito de quilombo tenha mudado e não esteja mais necessariamente relacionado à ideia de abrigo de negros fugidos do regime escravocrata, não há dúvida de que os quilombos são, ainda hoje, lugares de resistência. Afinal, as grandes metrópoles são marcadas por uma dinâmica de exclusão, expropriação e segregação de espaços e de indivíduos que, por carregarem a marca da diversidade, são cada vez mais empurrados para as regiões periféricas, guetos, vilas e favelas. E esta segregação não é apenas socioeconômica, mas tem também forte componente racial e cultural. É assim que, situados à margem da cidade formal, tais grupos étnicos travam árdua luta diária pela preservação de dinâmica cultural própria, singular, que transita entre a tradição e o presente, que dá sentido à vida de muitos afrodescendentes. Belo Horizonte pouco conhece de seus territórios negros, o que faz com que desconheça, também, a riqueza de realidades materiais e simbólicas que os compõem.

IDENTIDADES

Conhecer esses territórios, lançar luz à sua história, suas referências identitárias e reconhecê-los como patrimônio cultural é, sem dúvida, ação afirmativa ao avanço da luta pela consolidação do direito à diversidade, à memória e à história. Igualmente, significa avanço no longo processo de amadurecimento da discussão acerca do direito à cidade. Partindo desse entendimento, o FAN 2015 pretende promover o encontro entre os diversos territórios culturais que conformam nossa cidade, destacando, particularmente, aqueles que carregam a marca da resistência e da luta coletiva pela preservação da cultura negra, tal como os quilombos urbanos. Nesse movimento, vamos buscando aquilo que bem nos ensinou o pesquisador português Boaventura de Souza Santos: promover o direito à igualdade quando a diferença nos inferioriza e, simultaneamente, o direito à diferença quando a igualdade nos descaracteriza.

O festival será permeado por aproximações entre pessoas, crianças e adultos, tribos urbanas, grupos, países, artistas, festivais, esferas de governos, arte e sociedade civil, diferentes e iguais, culturas, antigo e novo. O festival se volta para a rua, para o encontro com o universal e o individual na construção de uma cidade mais cidadã, igualitária e verdadeiramente humana.

. Leônidas Oliveira é presidente da  Fundação Municipal de Cultura (FMC)
. Françoise Jean é gestora do patrimônio imaterial da FMC


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