O bom leitor

Mundo escrito e mundo não escrito reúne 43 textos em que Italo Calvino expressa seu amor pela leitura. Volume recém-lançado no Brasil traz artigos, cartas, ensaios, resenhas e entrevistas

por 30/05/2015 00:13
Stanford University/Reprodução
Stanford University/Reprodução (foto: Stanford University/Reprodução )
Maria Thereza da Silva Pinel



O conceito de literatura, bem como sua importância e suas fronteiras com o mundo real, são questões antigas, discutidas não só por críticos e pesquisadores, na academia, mas também por muitos escritores. Depois de séculos de teorizações, ainda não foram encontradas respostas definitivas para tais questionamentos. No entanto, em vista da rapidez com que tudo muda, será que existe essa verdade absoluta? Ou ela, por ser subjetiva, também se modifica com o tempo?

Essas reflexões são de grande interesse para Italo Calvino, importante autor italiano do século 20, que teve 43 textos organizados pelo professor de literatura Mario Barenghi, gerando uma coletânea publicada em 2002. Treze anos depois de seu lançamento na Itália, a obra finalmente chega ao Brasil pela Companhia das Letras, com tradução de Maurício Santana Dias. Ela reúne ensaios, artigos, cartas, entrevistas, resenhas, conferências e projetos, datados entre 1952 e 1985 e divididos entre quatro blocos temáticos, cronologicamente.

O primeiro – “Ler, escrever, traduzir” – é o que contém mais textos, nos quais o autor discorre principalmente sobre sua experiência literária, seja como leitor, teórico ou escritor. É nesse bloco que se encontra a conferência que deu título ao livro, Mundo escrito e mundo não escrito, apresentada na Universidade de Nova York em 30 de março de 1983. Nela, Calvino admite se sentir mais confortável no mundo dos livros do que no mundo real, por este ser cheio de incertezas e surpresas que desafiam o entendimento lógico humano. Porém, enquanto escritor, é esperado que ele tire do mundo não escrito inspirações para escrever e, aqui, ele coloca duas posições contrastantes e recorrentes na mente do escritor: “A primeira diz: o mundo não existe, existe apenas a linguagem. A segunda diz: a linguagem comum não tem sentido, o mundo é inefável”. Após algumas considerações, ele confessa que o próprio “impulso para escrever está sempre ligado à falta de algo que se queira conhecer e possuir” e completa dizendo que sempre escreve sobre algo que não sabe: “Escrevemos para que o mundo não escrito possa exprimir-se por meio de nós.” Esse texto representa bem as principais questões desenvolvidas ao longo de todo o livro, baseadas na fronteira entre o mundo e o que pode ser expresso com a linguagem.

O segundo bloco – “Sobre o mundo editorial” – tem predominância de projetos editoriais, inclusive alguns com catálogos separados por gênero, definidos pelo próprio Calvino. Já o terceiro – “Sobre o fantástico” – concentra artigos e análises de obras que se enquadram nessa temática, contando também com experiências próprias do autor, uma vez que sua obra fictícia conta bastante com narrativas fantásticas. No quarto e último bloco – “Ciência, história, antropologia” – é possível encontrar artigos com tom de resenha, em que Calvino analisa livros filosóficos, históricos e científicos, tocando em assuntos como canibalismo, infanticídio, solidão humana, literatura (e sua relação com a cultura contemporânea) e neurociências, entre outros.

Em suas reflexões, Italo Calvino, muitas vezes, toma como referência a tradição literária italiana, fazendo dela uma ponte para questões teóricas gerais que se encaixam em outras tradições no que diz respeito à teoria literária contemporânea, principalmente do mundo ocidental. Um exemplo disso é a análise (em carta) intitulada Sobre a tradução, em que ele começa dando uma resposta à crítica literária de Claudio Gorlier, mas no decorrer do texto avança em reflexões acerca de teorias de tradução, bem como do papel do crítico que não dá a devida atenção e valorização a esse agente tão necessário que é o tradutor. Nesse ritmo, o escritor italiano dá desenvolvimento a várias outras reflexões ao longo de todo o livro, partindo de autores e teóricos, alguns bastante conhecidos, como Marx e Lévi-Strauss.

A escrita literária de Calvino é comparada à do argentino Jorge Luis Borges, grande autor e crítico, uma vez que ambos produzem obras híbridas, misturando ficção e reflexão teórica. Não só o hibridismo ocorre na ficção, como também é possível notar um tom poético nos textos de Calvino que compõem a obra em questão, como se nota no texto de abertura, As boas intenções, mais próximo da crônica do que da teoria, como mostra o seguinte trecho: “O Bom Leitor aguarda as férias com impaciência. Adiou para as semanas que passará numa solitária localidade de mar ou de montanha um bom número de leituras que deseja fazer e já saboreia a alegria das sestas à sombra, o rumor das páginas, o abandonar-se ao fascínio de outros mundos transmitido pelas linhas cerradas dos capítulos”.

Essa escrita leve, honesta e um tanto quanto irônica e sarcástica de Italo Calvino torna a leitura muito prazerosa. Com análises ricas em exemplos, teorias e citações, além de, claro, a experiência e opinião própria do autor, Mundo escrito e não escrito se torna bibliografia importante para os que se interessam pelo universo literário. Para os que preferem a ficção, a editora Companhia das Letras está publicando, também, a obra completa de Calvino.
. Maria Thereza da Silva Pinel é estudante de letras na Universidade Federal de Minas Gerais e desenvolve pesquisa sobre conto de fadas e literatura brasileira contemporânea



MUNDO ESCRITO E MUNDO NÃO ESCRITO

. De Italo Calvino
. Companhia das Letras
. 312 páginas, R$ 44,90

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