Ângela Faria
A Folie à deux é a paranoia induzida por outra pessoa, em que sintomas psicóticos são compartilhados em dupla. Prepare-se. Essa “doença francesa” de Leonel, personagem de Rubem Fonseca, vai te contaminar. Histórias curtas, o novo livro do autor mineiro, é assim: obsessivo, neurótico, perturbador.
Mestre do humor violento, como bem definiu o crítico José Castello, Rubem é um perigo – sobretudo pra gente como a gente, que se acha tão normal. Ao mergulharmos nas 38 historietas, vemo-nos cúmplices de Daiana, que dá golpes pela internet; de Julinho, que frita o dedo da empregada; e de Caveirinha, o ex-gordo arrependido da operação de estômago. Condenado à vida light, o pobre se torna incapaz de realizar a introductio penis intra vas.
À primeira vista, desfila por esse livro uma “timeline” de bizarrices, pequenos horrores e contos de louvor ao politicamente incorreto. Não se iluda. Bastam apenas três ou quatro páginas e está embaralhado aquele nosso “jeito cool” de lidar com a vida... Vai dizer que você nunca condenou a gordona se fartando de calorias na mesa ali do lado? Atire a primeira pedra se jamais pensou em pular a cerca depois de jurar fidelidade eterna na alegria ou na tristeza. Vai querer convencer que realmente “nem notou” o rapaz branco, pinta de rico, acompanhado da mulher, negra retinta e lustrosa, carregando o bebê mulato?
Com Rubem Fonseca não tem mi-mi-mi. Ele torna íntima do leitor a sua turma de gordos, esquizofrênicos, adúlteros, matadores, ladrões e velhotas sem aquele papinho de “melhor idade”, grotescamente trabalhadas no botox. A gente até resiste, mas logo se vê parceira do marido assassino de Míriam, a mentirosa que usava brincos de pérolas como a moça do quadro de Vermeer. Não dá para disfarçar uma ponta de simpatia pelo sujeito que primeiro atira no cafetão e depois avisa às garotas: “Olha aqui, meninas, vou ficar de olho em vocês, se não deixarem de se prostituir eu arrebento o crânio de todas como fiz com esse puto. Entenderam? Vocês vão começar hoje mesmo a procurar um emprego decente”.
Tá certo. É incômodo, embaraçoso, constrangedor e escatológico. Com Rubem Fonseca, peido é peido – e não flatulência. E psicologia também. Não há quem não ame o perfume da própria “obra”, provoca esse Freud tupiniquim discretamente gozador, como bom mineiro. Afinal, temos aqui uma prova incontestável do egoísmo humano. “O que é nosso é sempre bom, pode ser um peido ou uma xícara de café; o que é dos outros é sempre ruim, pode ser um peido ou uma xícara de café”, filosofa o discípulo de Pierre-Thomas-Nicolas Hurtaut, que vem a ser o autor de A arte de dar peidos, obra lançada em 1751.
Justiça seja feita: nem só pequenos horrores alimentam as histórias desse expert em decadência humana. Há em suas páginas um sujeito que ama bichos e mora com um ouriço (sim, cheio de espinhos) chamado Zé. Ao descobrir que faria 100 anos, Manuel deita em sua cama e morre – feliz da vida. O tímido Rodrigo se enamora da ex-noviça virgem e os dois vivem uma história de amor. Outro Zé, portador de um estrabismo pavoroso, sonha conquistar a bela Helena.
TAURINO
Parceiro do leitor nessa folie à deux (loucura a dois), o juiz-forano Rubem Fonseca completou 90 anos no último dia 11. Radicalmente avesso ao circo das celebridades, ele recusa entrevistas há décadas, foge de jornalistas e não está nem aí para o ritual das efemérides. Esse taurino radicado no Leblon já fez o seu trabalho: revolucionou o conto brasileiro; agora, exige sossego para prosseguir espiando este mundo humanamente bizarro.
A filha, Beatriz Correia do Lago, declarou à imprensa que o pai vai chegar aos 100. Seu Rubem, como é conhecido pela vizinhança, malha, lê feito doido, gosta de séries de TV e anda encantado com a poesia de Eucanaã Ferraz. Em Escuta, seu novo livro, o autor carioca, de 54 anos, publicou Quem. Diz assim:
“Cheguei à mais absoluta baixeza:
usei da lógica; segui em linha reta
até ao chão da certeza;
fui à razão, bebi suas regras;
delimitei o que era e o que não era.
Hoje porém posso vender a crédito
todos os meus pensamentos;
mas quem confiaria num comerciante
que a própria filosofia fia?
Minha pele, fiquem com ela,
é de graça e já não é minha.”
HISTÓRIAS CURTAS
De Rubem Fonseca
Nova Fronteira, 176 páginas
R$ 34,90
A Folie à deux é a paranoia induzida por outra pessoa, em que sintomas psicóticos são compartilhados em dupla. Prepare-se. Essa “doença francesa” de Leonel, personagem de Rubem Fonseca, vai te contaminar. Histórias curtas, o novo livro do autor mineiro, é assim: obsessivo, neurótico, perturbador.
Mestre do humor violento, como bem definiu o crítico José Castello, Rubem é um perigo – sobretudo pra gente como a gente, que se acha tão normal. Ao mergulharmos nas 38 historietas, vemo-nos cúmplices de Daiana, que dá golpes pela internet; de Julinho, que frita o dedo da empregada; e de Caveirinha, o ex-gordo arrependido da operação de estômago. Condenado à vida light, o pobre se torna incapaz de realizar a introductio penis intra vas.
À primeira vista, desfila por esse livro uma “timeline” de bizarrices, pequenos horrores e contos de louvor ao politicamente incorreto. Não se iluda. Bastam apenas três ou quatro páginas e está embaralhado aquele nosso “jeito cool” de lidar com a vida... Vai dizer que você nunca condenou a gordona se fartando de calorias na mesa ali do lado? Atire a primeira pedra se jamais pensou em pular a cerca depois de jurar fidelidade eterna na alegria ou na tristeza. Vai querer convencer que realmente “nem notou” o rapaz branco, pinta de rico, acompanhado da mulher, negra retinta e lustrosa, carregando o bebê mulato?
Com Rubem Fonseca não tem mi-mi-mi. Ele torna íntima do leitor a sua turma de gordos, esquizofrênicos, adúlteros, matadores, ladrões e velhotas sem aquele papinho de “melhor idade”, grotescamente trabalhadas no botox. A gente até resiste, mas logo se vê parceira do marido assassino de Míriam, a mentirosa que usava brincos de pérolas como a moça do quadro de Vermeer. Não dá para disfarçar uma ponta de simpatia pelo sujeito que primeiro atira no cafetão e depois avisa às garotas: “Olha aqui, meninas, vou ficar de olho em vocês, se não deixarem de se prostituir eu arrebento o crânio de todas como fiz com esse puto. Entenderam? Vocês vão começar hoje mesmo a procurar um emprego decente”.
Tá certo. É incômodo, embaraçoso, constrangedor e escatológico. Com Rubem Fonseca, peido é peido – e não flatulência. E psicologia também. Não há quem não ame o perfume da própria “obra”, provoca esse Freud tupiniquim discretamente gozador, como bom mineiro. Afinal, temos aqui uma prova incontestável do egoísmo humano. “O que é nosso é sempre bom, pode ser um peido ou uma xícara de café; o que é dos outros é sempre ruim, pode ser um peido ou uma xícara de café”, filosofa o discípulo de Pierre-Thomas-Nicolas Hurtaut, que vem a ser o autor de A arte de dar peidos, obra lançada em 1751.
Justiça seja feita: nem só pequenos horrores alimentam as histórias desse expert em decadência humana. Há em suas páginas um sujeito que ama bichos e mora com um ouriço (sim, cheio de espinhos) chamado Zé. Ao descobrir que faria 100 anos, Manuel deita em sua cama e morre – feliz da vida. O tímido Rodrigo se enamora da ex-noviça virgem e os dois vivem uma história de amor. Outro Zé, portador de um estrabismo pavoroso, sonha conquistar a bela Helena.
TAURINO
Parceiro do leitor nessa folie à deux (loucura a dois), o juiz-forano Rubem Fonseca completou 90 anos no último dia 11. Radicalmente avesso ao circo das celebridades, ele recusa entrevistas há décadas, foge de jornalistas e não está nem aí para o ritual das efemérides. Esse taurino radicado no Leblon já fez o seu trabalho: revolucionou o conto brasileiro; agora, exige sossego para prosseguir espiando este mundo humanamente bizarro.
A filha, Beatriz Correia do Lago, declarou à imprensa que o pai vai chegar aos 100. Seu Rubem, como é conhecido pela vizinhança, malha, lê feito doido, gosta de séries de TV e anda encantado com a poesia de Eucanaã Ferraz. Em Escuta, seu novo livro, o autor carioca, de 54 anos, publicou Quem. Diz assim:
“Cheguei à mais absoluta baixeza:
usei da lógica; segui em linha reta
até ao chão da certeza;
fui à razão, bebi suas regras;
delimitei o que era e o que não era.
Hoje porém posso vender a crédito
todos os meus pensamentos;
mas quem confiaria num comerciante
que a própria filosofia fia?
Minha pele, fiquem com ela,
é de graça e já não é minha.”
HISTÓRIAS CURTAS
De Rubem Fonseca
Nova Fronteira, 176 páginas
R$ 34,90