A arte desmistificada

Com um texto leve e muito bem-humorado, a socióloga canadense Sarah Thornton tenta entender quem é e o que pensa um criador contemporâneo

por 23/05/2015 00:13
Stephanu de Sakutin/AFP
Stephanu de Sakutin/AFP (foto: Stephanu de Sakutin/AFP )
Walter Sebastião



A arte da passagem do fim do século 20 para as primeiras décadas do 21 evidencia um paradoxo. A maioria dos trabalhos tem linguagem clara, às vezes – até excessivamente – direta, quase populista, na sua ânsia comunicativa. Mas que, por ser realizada com extraordinária variedade de meios, deixa o espectador embaraçado. Treinados a compreender arte como peças feitas a mão ou criadas com as antigas tecnologias artísticas, diante de mundo que se vale de todos os materiais (e até do imaterial), tende-se a achar que tudo é arte ou que o artista se tornou um charlatão. E se esquece de fruir momento de admirável vertigem de formas, meios e conteúdos.

É um saboroso passeio exatamente por este ambiente, tendo como guia os próprios artistas, o que oferece o livro O que é um artista?, de Sarah Thornton. A autora canadense, que é socióloga, apresenta 33 perfis, pontuando processos criativos e carreira. De celebridades como Marina Abramovic, Ai Weiwei, Beatriz Milhazes, Jeff Koons, Cindy Shermann e Damien Hirst. Mas também de criadores igualmente importantes, mas menos conhecidos, como Maurizio Casttelan, Eugênio Dittborn, Grayson Perry, Andrea Frazer e Martha Rosler. Todos autores de obras que encantam e seduzem público e crítica, mas também provocam interminaveis controvérsias e polêmicas.

O que é um artista? (o título original é 33 artists in 3 acts) é extremamente bem escrito, tem texto envolvente que, sem ser pedante, dialoga com o leitor não especializado. Não é livro sisudo. Com bom humor, expõe um panorama de temas postos pela produção e a inserção dela no sistema de arte. Sarah Thornton se recusa a repetir (e ratificar) clichês tradicionais dos escritos sobre arte contemporânea. Como o escândalo diante de peças que fogem ao escopo miúdo de uma pretensa tradição. Ou a crença de que “tudo já foi feito”, que acaba reduzindo obras inovadoras a um desdobramento de realizações ancestrais. Valorizando a irreverência, procura entender que questões cada autor quer colocar em discussão.

O tom dos textos é de escuta atenciosa, qualificada, dos mais diversos criadores. Gente com posicionamentos políticos os mais diversos. Tudo movido por respeito, que não agaga a ironia, e por afeto, que não interdita o distanciamento. Em vez de construções históricas esquemáticas, Sarah Thorton coloca diante do leitor idiossincrasias, contradições, dramas, aspectos cômicos e dúvidas dos artistas. Mas também a coragem e a ousadia deles, a inteligência posta na relação com o mercado e as instituições, a luta diária com os dilemas do ofício – inclusive a luta pela sobrevivência –, as relações interpessoais. A proposta do livro é ver como o artista circula pelo mundo e como enxerga a si mesmo.

Três atos

Os personagens, explica a escritora, foram selecionados por critérios “semelhantes aos de um curador ou de diretor de elenco”, isto é, pelo interesse que trabalhos ou atuações despertam. São autores, na maioria dos casos, nascidos entre as décadas de 1950 e 1960, com obra relevante, que se mostraram abertos ao projeto dela, articulados e sinceros. O que não significa, avisa a escritora, que a hipocrisia esteja completamente ausente no livro. “Pelo contrário, incluo afirmações suspeitas para contrastar e conferir alívio cômico”, observa. O livro está dividido em três atos: Política, Filiação e Oficios, o que, observa Sarah, também influenciou na escolha dos artistas.

Política, explica Thornton, é voltada para a ética do artista, atitude em relação ao poder e a responsabilidade. Filiação, por sua vez, mira a “relação do artista com seus pares, musas, apoiadores, do ponto de vista da competição e da colaboração”. E Ofício, encerrando o volume, pontua as habilidades do artista em todos os aspectos que envolvem a feitura das obras, desde a concepção até a execução e as estratégias de marketing. Aspectos que, ao longo do texto, criam uma rede de questões reveladoras das convicções e práticas de cada um, além de mostrar com clareza as transformações econômicas e culturais que o mundo contemporâneo impôs a todas as pessoas.

Estruturalmente, o livro é construído a partir da convicção da autora de que artistas não fazem apenas arte, mas “criam e preservam mitos”, o que torna “sua obra influente”. Ou da constatação de que “numa esfera em que tudo pode ser arte, não existe nenhuma medida objetiva de qualidade, de modo que o artista ambicioso deve estabelecer seus próprios padrões de excelência”. Segunda Sarah Thorton, isso cobra uma “imensa autoconfiança”, “conquistar a convicção dos outros” e “agir de modo a conquistar séquito fiel”. Vem daí a atenção concedida ao estúdio do artista, que para a escritora é o “palco particular dos ensaios diários dessa crença em si mesmo”.

Considerações discutíveis e psicologizantes (quase motivacionais) não apagam o que de melhor os textos trazem: um olhar minucioso sobre o artista, a obra dele e o contexto artístico. A observação revela um gosto antropológico sobre todos os rituais e a maioria das comunidades que habitam o mundo da arte. Ao longo do livro (de mais de 400 páginas), a autora procura equilíbrio, contrastes, exceções, o tempo todo. Fidelidade à diversidade, salutar já que a arte, o sistema da arte e a vida do artista contemporâneo formam um contexto avesso a dogmatismos, que incita muitas leituras, detalhes, relativizações.



Curiosidades

Informação essencial, rarefeita nos textos, é que o volume, apesar de trazer artistas de diversas nacionalidades, apresenta o circuito de arte anglo-saxão – Londres e Nova York reinam praticamente solitárias – tornado epicentro menos por ser ambiente especialmente criativo e mais por acúmulo de capital e saber, o que criou espetacularização mercadológica, midiática, institucional e até estética. Mas até este aspecto está registrado no texto, quando Thornton analisa a obra do inglês Damien Hirst. É livro divertido, às vezes muito engraçado, mas que termina com nota melancólica, já que a autora suspeita que a “indústria da arte” está massacrando bons criadores.

Tem de tudo entre os indivíduos que moram na “tribo” das artes. Desde militantes (feministas, gays, ambientalistas, da defesa dos direitos humanos) até quem foge de questões políticas como o diabo foge da cruz, para usar uma expressão antiga. Há artistas materialistas, espiritualistas, capitalistas, comunistas e até quem deixa a suspeita de apenas investir na área. Tem o artista que faz tudo para conseguir publicidade e outros preferem atuação discreta. Os que acreditam na afinidade entre arte e artesanato coexistem com quem afirma que o mundo contemporâneo separou definitivamente as duas coisas. Alguns acreditam no mistério da arte; outros consideram uma empreitada.

O texto de Sarah Thornton traz também extensa lista de curiosidades sobre o mundo da arte. Como a existência em Nova York da galeria chamada Triple Candie, que faz exposições de artistas sem pedir autorização a eles. E que já realizou exposição póstuma de um artista vivo (o debochado italiano Maurizio Castelan). A artista Jennifer Salton, em obra chamada How do artists live? (2006), feita com estatísticas, informa que 60% dos artistas não vivem do que fazem e que 0,8% deles têm renda vinda de alguma atividade ilícita (a maior parte com sublocação ilegal). A escritora registra que o Brasil é o único país do mundo onde o artista vivo mais caro do mercado é uma mulher: Beatriz Milhazes.

O QUE É UM ARTISTA?

. De Sarah Thornton
. Editora Zahar
. 448 páginas, R$ 59,90





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