Corpo de escritor

O argentino Diego Vecchio fala de seu livro Micróbios, que será lançado no Brasil em junho, dias antes de sua participação na Festa Literária Internacional de Paraty

por 16/05/2015 00:13
Eric Pagliano/Divulgação
Eric Pagliano/Divulgação (foto: Eric Pagliano/Divulgação)
Ubiratan Brasil



Autor confirmado para a próxima Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, em julho, o argentino Diego Vecchio vem credenciado por um livro curioso e fascinante, Micróbios, que a Cosac Naify lança em junho. São nove relatos escritos com o rigor gramatical da medicina, mas que apresentam personagens ao mesmo tempo surreais e factíveis. Alguém como Dorothea Kristensen, criadora de histórias que, lidas em voz alta para crianças enfermas, as curam instantaneamente. Ou ainda a pequena Kathy Ishiyama, que, viciada em uma bala de gengibre, emagrece até os ossos quando o doce deixa de trazer frases surpresas em suas embalagens. Todos trazem uma relação entre literatura e medicina.

Com um humor peculiar, Micróbios nasceu da leitura feita por Vecchio de A saúde dos homens de letras, livro publicado em 1768 por Samuel Tissot, médico particular de Jean-Jacques Rousseau, e que detalhava as doenças que afetam escritores, homens fechados em locais malventilados, cheios de pó e sentados horas seguidas em posturas prejudiciais à coluna. Ao ler a obra, Vecchio percebeu que aqueles sintomas eram os mesmos apresentados em outro tratado de Tissot, sobre o onanismo, em que descreve com profusão de detalhes as diversas doenças que atacaram os praticantes do prazer solitário: anemia, asma, enxaquecas, calvície prematura, palidez, queda dos dentes, envenenamento do sangue, incontinência urinária, hemorroidas. Sobre a descoberta e seu livro, Vecchio, que vive em Paris, respondeu por e-mail às seguintes questões.

Qual foi sua reação ao ler as duas obras de Tissot?

No início, pus-me a rir. Mas logo percebi que o que Tissot afirmou não era tão ridículo. Ele dizia, na linguagem assustadora e calvinista do século 18, o que muito mais tarde Sigmund Freud expressou de uma maneira mais livre de preconceitos: a literatura está estreitamente associada a um fantasma. E Tissot assinalou, de um modo totalmente canhestro, mas não de todo errado, algo que me parece impensável para a literatura: o corpo do escritor. Contrariamente às outras artes, como dança, teatro, artes plásticas, fotografia ou cinema, que colocam no centro de suas práticas o corpo do ator ou do modelo, a literatura parece se esquecer do corpo do escritor. A literatura aspira a ser, para o bem e para o mal, uma linguagem autônoma, completamente despojada de toda a realidade, incluindo o corpo. E esse corpo, que tem uma experiência tão discreta e silenciosa, se faz presente por meio da doença. A enfermidade é uma espécie de lupa, exagerando aquilo que nos é imperceptível e que dá voz aos órgãos mudos. Percebemos que temos um estômago, que se encarrega de fazer a digestão, quando sentimos dor, e não quando desfrutamos de uma perfeita saúde. Foi então que fiquei com vontade de escrever sobre as doenças dos escritores, para colocar no centro o problema do corpo, explorando assim as relações entre literatura e medicina, enfermidade e escrita.

Foi necessária muita pesquisa para escrever com precisão os detalhes médicos? A hipocondria é uma das formas mais potentes da imaginação?

Na realidade, trabalhei com um velho dicionário Larousse de medicina que me forneceu todas as informações necessárias para escrever uma ficção literária, pois a documentação não faz falta, é preciso apenas imaginar. Leitores de Micróbios me perguntam se estudei medicina. Respondo que não sou médico, mas hipocondríaco. E, como tal, sou muito sensível a certas manifestações somáticas que para muitos passam totalmente despercebidas. Não sei se é possível dizer que os hipocondríacos são doentes imaginários. Em todo caso, parece-me mais exato dizer que o hipocondríaco é alguém que tem muito desenvolvido o imaginário da doença. O que não é a mesma coisa. O hipocondríaco é um hiperbólico, ou, se preferir, uma pessoa exagerada. A cabeça dói um pouco e já se imagina com um câncer no cérebro. É picado por um mosquito e acha que está com malária ou dengue. Lê no jornal que, na outra extremidade do mundo, há uma epidemia de gripe aviária e já fica angustiado, imaginando-se a ponto de morrer. Essa sensibilidade hipocondríaca me ajudou a escrever o livro mais que a leitura de um tratado de anatomia, fisiologia ou patologia.

A galeria de personagens é rica e plena de matizes. Como foi o processo de criação?

Quando escrevi os primeiros relatos, percebi que havia um sério perigo. Falava de doenças o tempo todo, em cada página, para não dizer em cada linha. Comecei a duvidar do que estava fazendo. Não poderia passar dois ou três anos da minha vida convivendo com personagens com uma saúde tão frágil, tossindo o tempo todo, sofrendo terríveis enxaquecas ou emagrecendo até desaparecer. O tema da doença por si mesmo não é muito encantador. Para atenuar os possíveis efeitos secundários de um livro tão monotemático, tentei introduzir diversas variações. Por exemplo, para cada relato, escolhi um país diferente, como Japão, Áustria, Hungria, Argentina, Canadá, Bélgica, Nova Zelândia. E procurei variar o tipo de doença. Em cada relato, há uma enfermidade que afeta uma parte diferente do corpo, como o sistema nervoso, o digestivo, o respiratório, o urinário, etc.

As biografias inventadas em Micróbios lembram as inventadas por Borges...

Não posso negar a marca de Borges nessas biografias imaginárias de escritor. Uma marca que é sempre mais ou menos problemática. Borges é um buraco negro que espreita a literatura argentina. Pode ser um escritor muito cativante, mas do qual é preciso escapar a tempo, para evitar ser engolido por ele. Para mim, o ponto de fuga desse modelo acabou sendo o tema do corpo. Os escritores ‘‘borgesianos’’ são pura literatura sem corpo. Sabemos muitas coisas da vida e dos gostos literários de Pierre Menard, mas não sabemos nada, absolutamente nada, do seu rosto, sua vida sexual, suas enfermidades, muito menos sobre sua caderneta de vacinas.

Os títulos dos contos soam freudianos, concorda?

Sim. Sempre fui fascinado pelos seus títulos, em especial de históricos clínicos como o do Homem dos Ratos, ou o Homem dos Lobos. Freud é fundamentalmente um grande autor. Quando escrevia sobre um caso clínico, não cuidava apenas da argumentação, mas também do estilo e da construção de uma trama. Seus históricos clínicos podem ser lidos perfeitamente como romances burgueses, repletos de peripécias dramáticas, aventuras e desventuras sentimentais protagonizadas por jovens judias, com pais sifilíticos, que, para conseguir os favores de uma dama, estão dispostos a fazer qualquer coisa, como deixar sua filha como um joguete nas garras do marido enganado. Nesse sentido, Freud vai muito mais longe do que Balzac, Dickens, Jane Austen e mesmo Zola.

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