O país em frente ao espelho

Brasil: uma biografia será lançado quinta-feira, no Memorial Minas Gerais Vale, na Praça da Liberdade

por 09/05/2015 00:13
Orlando Brito/arquivo pessoal - 1980
Orlando Brito/arquivo pessoal - 1980 (foto: Orlando Brito/arquivo pessoal - 1980)
Marcelo Coelho da Fonseca



A intenção das autoras de Brasil: uma biografia é que o livro não fique restrito ao universo acadêmico e se torne acessível ao grande público. Um divisor de águas para aqueles que olham para a história como uma disciplina maçante e cansativa. Mesclando relatos conhecidos, com novas histórias e centenas de imagens que ajudam a percorrer de forma mais leve a história do Brasil desde o século 15 até os anos 1990, a dupla convida professores, estudantes primários ou mesmo aqueles que se interessam em conhecer melhor o país em que vive. “Durante os dois anos de trabalho, descobri que a história do Brasil é muito legal. Mesmo com momentos de dor e injustiça, é uma história emocionante”, conta Heloísa. Nesta semana, a historiadora e pesquisadora mineira recebeu a reportagem do Estado de Minas na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) para falar sobre como foi a produção da obra, juntamente com a antropóloga da Universidade de São Paulo (USP), que participou da entrevista por meio do Skipe. Brasil: uma biografia será lançado na quinta-feira, no Memorial Minas Gerais Vale, na Praça da Liberdade.

Qual foi a intenção de escrever uma biografia do Brasil? Como foi tratar uma nação como um personagem?

Lilia Schwarcz: Para nós corresponde à própria filosofia do livro. A primeira ideia é que não há “uma história” do Brasil, e sim várias “histórias do Brasil”. O nome “Uma biografia” tem a ver com esse olhar, ou seja, fizemos nossa biografia, outras pessoas podem fazer outras biografias. Essa foi a nossa perspectiva, com nossas escolhas e olhares. Apostamos na busca das questões sociais, políticas e culturais. E percebemos que um país pode sim ser um personagem. Não no sentido de uma biografia autorizada, mas uma biografia não autorizada. E não em um sentido de um personagem evolutivo. Mas um personagem que tem suas ambiguidades, suas contradições, suas características, suas teimosias, certezas e virtuosidades. Nós nos afeiçoamos a essa ideia. Se podemos pensar a história como um exercício marcado por continuidades, ela também é marcada por reiterações, por estruturas. E por isso a ideia desse personagem Brasil.

Heloísa Starling: Quando começamos a escrever fizemos uma opção: não vamos fazer uma história do Brasil, porque uma história do Brasil não cabe em um livro. Vamos fazer do Brasil uma história. Decidimos também construir uma narrativa, o que implica personagens. A intenção foi criar uma narrativa atraente, de maneira que as pessoas conheçam um pouco mais dessa história brasileira. O lado da biografia também nos permite juntar o que é mais privado com o que é mais público. A ideia da biografia foi dando forma para o livro.

O livro traz relatos particulares e casos menos conhecidos que se juntaram aos episódios mais conhecidos da história do Brasil. Como foi o processo de escolha para selecionar quais desses casos menos conhecidos seriam incluídos?

HS: Fizemos uma obra conjunta. Alguns capítulos foram montados por mim e enviados para a Lilia, outros feitos por ela e enviados a mim. O livro não foi feito de forma fatiada, mas discutimos cada parte e episódio. Pensamos os eventos com essa característica: existe uma história de direitos, construção de cidadania dos brasileiros que não sabemos. E também a ideia de que existe um lado perverso do Brasil, em que, por exemplo, a origem escravocrata determinou e construiu uma sociedade desigual e injusta. Ao mesmo tempo em que o Brasil é uma longa busca por autonomia e liberdade – que começa lá no século 16 – é também uma sociedade formada com nó escravista, portanto racista e violenta. Nesses dois eixos conduzimos nosso relato e surgiram várias histórias, de várias regiões e vários grupos.

LS: Um livro desse só pôde ser feito porque nós temos uma historiografia muito consolidada. Não temos a veleidade de ser autoras em todos os períodos, mas a obra traz pesquisas novas. E tentamos fazer um livro não só descritivo, mas também de caráter interpretativo. Cada capítulo e cada história carregam sua interpretação. Percebemos a questão da escravidão como linguagem antes mesmo da entrada dos africanos no século 16 com a cana-de-açúcar, mostramos como a escravidão é uma linguagem antes de o Brasil ser Brasil. Desde o uso da força obrigatória dos indígenas. Essa também é uma questão forte do livro, trazer um Brasil ameríndio forte. Não foi uma descoberta, mas uma invasão que levou à morte das populações. Trouxemos a mestiçagem como uma questão problemática e abordamos a ideia de democracia racial. Pensar que esse Brasil mestiço é o país da exclusão social e combater o mito do Brasil como um país pacífico. Mostramos como a violência está presente no Brasil, também na linguagem. Não há como um país que foi o último a abolir a escravidão no Ocidente não ter naturalizado uma linguagem da violência. Vamos carregando essa linguagem até o tempo contemporâneo. Fazemos uma discussão a todo tempo das dificuldades neste país, de grandes latifúndios e grandes mandonismos, de pensar a república como direito público e valores cidadãos.

HS: Em algumas horas o Brasil pulava em cena. Eu planejava uma história para um capítulo, mas apareciam coisas que cresciam. Situações ligadas aos grandes episódios políticos do país. Por exemplo, na morte de Vargas, em 1954, não sabia a quantidade de motins que aconteceram em BH, em Porto Alegre e no Rio de Janeiro. À medida que construíamos os capítulos, alguns acontecimentos se impunham. Estudamos muito e fomos surpreendidas diversas vezes.

Quais foram as obras ou autores que mais influenciaram a produção desse livro?

HS: Alguns autores são decisivos em determinados momentos. Por exemplo, é impossível tratar do período Vargas sem ler Ângela Castro Gomes. É impossível tratar do Brasil império e da Proclamação da República sem ler José Murilo de Carvalho. Mas, para o olhar e para pensar o Brasil, tivemos dois autores fundamentais: Sérgio Buarque de Holanda e Evaldo Cabral. Este último, ao estudar Pernambuco, nos ensina a ver o Brasil de forma diferente. Ele concentra seu trabalho sobre o estado de Pernambuco, mas cada estudo nos mostra um país de outra forma. A Lilia me aplicou no Alberto Costa e Silva, um autor fantástico, com o livro chamado Esse rio chamado Atlântico, que mostra como cada brasileiro carrega um escravo dentro de si. Foi outra obra fundamental.

LS: O Alberto da Costa e Silva e o João Reis têm papel fundamental para se pensar na questão da escravidão e sobretudo nas muitas nações que vieram para o país. Os vários grupos de africanos. Para pensarmos como é preciso ir além do gancho da vitimização e avaliar sobre como esses povos sempre lutaram por seu lugar no Brasil. Falar em escravos é supor que as pessoas são assim por natureza. Ao falar em escravizados politizamos a palavra. Nenhuma palavra é inocente e essa politização é muito importante. Outro autor que merece ser mencionado é José Murilo de Carvalho. Ele tem uma discussão sobre cidadania de forma incontornável. Ele aparece como um historiador fundamental do império, mas também na questão da república e na construção da cidadania.

O livro aposta também no uso das imagens e das análises sobre imagens históricas e algumas pouco conhecidas. Como foi trabalhar com a linguagem visual em um livro de história do Brasil?

LS: Tenho quase uma missão com a questão das imagens. Tenho trabalhado com imagens há muito tempo, desde quando defendi meu doutorado. Depois fui indo mais além, sobre a questão da construção imagética do imperador. Quando nós combinamos sobre o projeto deste livro chamamos a atenção para o fato de que nós historiadores somos muito refinados para lidar com documentos escritos, escrutinamos a origem, autoria, veracidade, mas quando chega a questão das imagens, usamos como forma de ilustração. Pegamos uma tela como a Primeira missa, encomendada no Segundo Reinado a um pintor que foi pago pelo imperador com objetivo, e usamos para falar do descobrimento do Brasil. Como assim? Não dá. Uma questão importante foi tratar a imagem não como ilustração, mas como documento. É possível contar uma história escrita e uma por imagem, que é o que fazemos com as 150 usadas neste livro. A legenda técnica de uma imagem pode não ter a ver com a legenda de conteúdo. Algumas imagens são conhecidas e incontornáveis, que tem que entrar, mas o grupo do Projeto República, da UFMG, fez um trabalho sensacional, que apurou várias imagens novas. A originalidade dele tem muito a ver com essas novas imagens e mostrar como elas não são apenas um produto, mas que refletem o momento em que foram produzidas. Fomos acostumados a ver o império a partir de Debret, mas não lembramos que ele foi financiado pela Coroa. Esse tipo de questionamento é importante.

HS: Tivemos também grandes achados. Como a imagem da república, que está no memorial de Minas, Minas Vale, e estava escondida, pintada na parede. Ela apareceu depois que foi feita a restauração. E não tem nenhuma representação da república como ela. Exploramos isso. Ela é uma representação feita em Minas, no momento da fundação de Belo Horizonte. Trouxemos o José Murilo de Carvalho (historiador especialista no império) aqui para ver essa imagem. Ele nunca tinha visto. Achamos uma igreja no Serro, no interior de Minas, onde o teto dela, do século 18, apresenta a descida de Cristo da cruz, mas ele é trazido pelos sans culotes, personagens da Revolução Francesa, e no fundo tem a figura da Bastilha.

Sobre as imagens que estavam perdidas ou esquecidas por aí, por que muitas não receberam atenção até hoje?

HS: Ou nunca tinham sido exploradas suficientemente e podem vir a ser exploradas melhor. Sobre essa da república, por exemplo, ninguém nunca produziu nada sobre ela. Eu e a Lilia estamos pensando em fazer um artigo sobre isso e sobre outras imagens que achamos. Temos coisas boas. As imagens sobre as revoltas dos séculos 17 e 18 são começam a ser produzidas no século 19. Tem uma imagem que não consigo entender como não foi usada até hoje. É do fotógrafo Orlando Brito, no período do Geisel, que ele flagrou o treinamento de tortura do batalhão da guarda presidencial. É um documento importantíssimo para comprovar a tortuna no Brasil. Ele capturou a cena em que o batalhão presidencial estava sendo treinado para torturar, isso é impressionante. As imagens contam a história.

LS: Algumas pessoas já até vinham explorando. Temos uma historiografia sobre a arte no Brasil muito bacana. Sobre uma série de artistas. O que é muito novo nesse tipo de livro é introduzir as imagens e fazer isso de maneira crítica, dando o contexto e o local. Devolvendo para o leitor o que ele já conhece. Em todos os períodos temos imagens importantes. Quando pensamos por que algumas dessas imagens ainda não foram tão exploradas, temos que pensar também uma questão técnica de se considerar. A historiografia nunca está parada. Essa imersão nas imagens tem a ver com os novos domínios das imagens, das possibilidades de reprodução, de análise, de acesso aos arquivos, que eram mais difíceis há alguns anos. Hoje podemos analisar as fotos com detalhes que não tínhamos. Ao abrir uma imagem com a qualidade técnica que temos hoje aparecem detalhes que passavam despercebidos antes.

Como foi a decisão de limitar a obra até o ano de 1995? Por que parar no início do govenro de Fernando Henrique Cardoso?

HS: Acho que podemos fazer uma história do tempo presente, mas essa história seria mais informativa. O que nós tentamos no livro foi construir uma narrativa. Trabalhar com um conjunto variado de fontes para contar a história de ângulos diferentes. Neste momento atual, esse conjunto de fontes seria mais difícil. No tempo presente teríamos que trabalhar fundamentalmente com informação e haveria uma quebra de ritmo. O fato de que esses personagens recentes – Fernando Henrique, Lula e Dilma – continuam atores, estão em plena atividade. É difícil narrar uma ação que está acontecendo. Isso seria um risco e mudaria o tom. Fazemos uma aposto no livro, de que talvez o Brasil esteja começando um novo capítulo de sua história. A Nova República acabou, o presidencialismo de coalizão se esgotou e a democracia se institucionalizou. O passado não é mais e o futuro não é ainda. Talvez estejamos vivendo o exato momento em que um novo capítulo da história brasileira vai começar. Pode ser que amanhã teremos um dado fundamental para compreender esse novo capítulo.

LS: Ficamos com uma coceirinha mesmo para tratar outros temas. Mas, como historiadores não podemos nos dar ao luxo de analisar processos em curso. O legado de FHC e Lula está se fazendo. Basta ver a importância dessas figurar nos dias de hoje. O livro termina em 1995, mas na conclusão entramos nos trabalhos da Comissão da Verdade, no processo do mensalão, que são processos fechados. E falamos das manifestações de ruas, entramos do processo da Petrobras até onde perdemos, já que o processo não está encerrado. A história tem corrido rápida para quem a vive e é sujeito, é sempre acelerada. Nada impede que, se este livro vier a ser afirmar, venhamos a completá-lo.

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