Longa jornada devassidão adentro

Em seu novo livro, encharcado de erotismo, o escritor e artista plástico Nuno Ramos parece brincar o tempo todo com as convenções e os clichês literários

por 09/05/2015 00:13
Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press
Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press (foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press)
Sérgio Medeiros *



Deitado num colchão na sala, um velho solitário vive na companhia apenas da reprodução de um quadro famoso. É um pobre clown, como ele próprio reconhece. Essa cena beckettiana está no novo livro do artista plástico e escritor Nuno Ramos, Sermões (Iluminuras), dividido em sete seções que narram a vida de um professor aposentado de filosofia obcecado por sexo.

A menção a Beckett não é inesperada, pois, num livro anterior, Ensaio geral (Globo, 2007), Nuno Ramos “entrevista” o escritor irlandês, que afirma: “Posso, desde pequeno, ficar assim, como estou, na posição em que cair, indefinidamente”. O protagonista de Sermões jaz depois do gozo num tapete ou num colchão, na posição em que tiver caído, até a próxima cópula, quando se reerguerá para em seguida cair outra vez.

A noção de “queda” parece orientar uma faceta formal do poema, que logo chama a atenção: a desconstrução de palavras. O objetivo é sempre destacar uma letra ou sílaba, e parece ser, à primeira vista, um procedimento ingênuo e esteticamente frustrante. Assim, pululam no vasto poema, desde a página inicial, versos como “Expele sua cola no um/bigo ou colo, cab/elo ou boca”.

Esse procedimento primário alude, obviamente, àquilo que se abre durante a cópula, ao mesmo tempo que mostra, por meio do deslocamento das sílabas de um verso para outro, o escorrer, o pingar etc., remetendo ao gozo. As letras e sílabas soltas acabam adquirindo, porém, no evoluir da trama (trata-se quase de um romance), eficácia visual e sonora, e finalmente se tornam algo de necessário.

Pois, de repente, o leitor passará a se perguntar se Nuno Ramos não estaria, com humor peculiar, brincando o tempo todo com convenções e clichês literários. O poema se arrasta, mas não se leva a sério: surgem nele frases como “Adeus/literatura” ou “voz vazando um verso ruim”. Alertado para a dimensão irônica de Sermões, o leitor perceberá que a lenga-lenga (expressão usada no poema) do professor aposentado é intencional e que o kitsch é buscado afoitamente pelo escritor.

O barroco é importante para Nuno Ramos. Não por acaso, seu livro começa em Ouro Preto, perambula depois por Londres e São Paulo e, finalmente, volta para Minas. A Igreja do Rosário então ressurge nos versos e aparece numa fotografia inserida no poema, já perto do seu fecho. Segundo Francis Ponge, o figo, que ele chama de pera barroca, é uma igreja ou capela, e, quando aberto, o altar cintila lá dentro. No poema erótico de Nuno Ramos, a vagina é chamada, sem nenhum constrangimento, de figo. Nesse clichê, o banal se alia com o barroco, dois ingredientes destes Sermões.

O corpo do herói é um teatro onde todos os monólogos foram ditos. Mas não se trata de um indivíduo apenas decrépito que estaria condenado, como certos personagens de Beckett, a falar sem parar, mesmo quando fisicamente paralisados ou a ouvir incessantemente na penumbra uma voz cuja origem é indefinida. É certo que o professor de filosofia ouve vozes e que a sua solidão é lancinante, mas ele é alguém que também se orgulha de suas proezas físicas, e, sobretudo, das sexuais. Ele buscaria assim a epifania, entre sardas (corpos) e estrelas (cúpulas, ou cópulas).

A prosa e os versos de Sermões não poupam o leitor da descrição minuciosa de seus “feitos” eróticos, que vão se sucedendo no livro sem grandes surpresas. É acertada esta ponderação do herói: “Eu era a desaceleração prosaica do grande poema”. As cópulas são rotineiras e previsíveis: “Ela dorme satisfeita, incr/ível, goz/ou comigo quando podia/ter um Apolo inteiro para si”.

De volta a Ouro Preto, o protagonista é mais uma vez seduzido pela igreja barroca e almeja transformar-se num gigante viril, numa cena pantagruélica hilária, que é uma maneira saborosa de “glorificar” a nave do monumento mineiro. Parece-me que o obsceno dessa e de outras cenas de sexo do livro residiria, acima de tudo, na nudez dos amantes, na medida em que ela exporia, com certa discrição, é verdade, as mazelas mais óbvias do corpo humano.

Quando o herói se despe, aparecem as dobras de banha e os enxames de pintas, sem contar que a sua pança está cada vez mais frouxa; a mulher tampouco é sempre uma beldade, a julgar por esta descrição cruel de uma parceira casual do protagonista: “Ela tem um viveiro adorável/de celulite”. Se o corpo decrépito, ou já maduro, não é uma epifania, mas algo de deplorável, o poema de Nuno Ramos nos permite vislumbrar, no entanto, naquela que talvez seja a sua melhor parte (a última), uma possível sublimidade do ser, e curiosamente (ou previsivelmente) numa cena que parece haver saído de um filme B, como frisa o poeta.

Depois de descrever dois conhecidos filmes clássicos, Sermões se encerra com uma aventura ardente numa academia de ioga, onde aparece uma personagem hermafrodita, a mais inesquecível do livro. Deliciosa e surpreendente, a narrativa breve mostra o (re)encontro do professor consigo mesmo, graças à lição dessa mestra nada convencional.


* Sérgio Medeiros é poeta, tradutor e professor de literatura na UFSC. Publicou, entre outros livros, Totens (2012), O choro da aranha etc. (2013) e O fim de tarde de uma alma com fome (2015).



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