Uma nação para iniciados

Em Brasil: uma biografia, Lilia Schwarcz e Heloísa Starling analisam a trajetória de lutas, buscas por liberdades e a tentativa de construir uma cidadania no país

por 09/05/2015 00:13
Orlando Brito/arquivo pessoal - 1972
Orlando Brito/arquivo pessoal - 1972 (foto: Orlando Brito/arquivo pessoal - 1972)
Marcelo Coelho da Fonseca



“O Brasil não é para principiantes.” Antes mesmo de se tornar Brasil, ainda no período em que portugueses buscavam dominar (já que tiveram pouco interesse em compreender) o que tinham achado na outra ponta do oceano Atlântico, a história do país vem se afirmando como uma trajetória de lutas, buscas por liberdades e tentativas de se construir uma cidadania. O livro Brasil: uma biografia, das historiadoras Lilia Schwarcz e Heloísa Starling, conta a história desse personagem gigante e complexo, que não tem nada de previsível. Os protagonistas são os brasileiros, desde as mais famosas figuras da história política nacional aos relatos de personagens não tão conhecidos, que têm muito a contar sobre o passado brasileiro. A frase acima, uma provocação que partiu do compositor carioca Tom Jobim, dá uma ideia do desafio que é refletir sobre o país e das contradições que permeiam a história do Brasil e que, segundo as autoras, precisa mesmo de uma boa tradução.

Seguindo a ordem cronológica da história do Brasil, as autoras começam a narrativa antes de o país ganhar um nome. Chamada inicialmente de Terra de Vera Cruz, o território achado pelos portugueses ficou marcado desde o princípio por uma relação ambígua dos recém-chegados europeus com os nativos. Deslumbrados com o novo mundo, os primeiros relatos apontam a natureza pacífica dos ameríndios e de uma conquista sem violência. Enquanto na Europa guerras e lutas que duravam décadas se desenrolavam de forma recorrente, o novo mundo, equivocadamente, ganhou a fama de ser um lugar onde os conflitos se aliviavam surpreendentemente. Aos poucos, a avaliação inicial, que talvez refletisse um desejo europeu, se mostrou completamente equivocada. Os séculos seguintes provariam esse erro de cálculo.

Atravessando o período da civilização do açúcar, invadiu as esferas sociais, econômica e cultural e deixou marcas profundas que vão além da devastação do litoral na região Nordeste, alcançando características familiares nos grandes engenhos transmitidas até os dias de hoje. A escravidão ganha força com o passar dos anos e se torna enraizada no Brasil, marcando costumes e palavras. “Se a casa-grande delimitava a fronteira entre a área social e a de serviços, a mesma arquitetura simbólica permaneceria presente nas casas e edifícios, onde, até os dias que correm, elevador de serviço não é só para carga, mas também e, sobretudo, para os empregados que guardam a marca do passado africano na cor”, analisam as pesquisadoras.

Espaço e sobrevivência

Em Brasil: uma biografia, no entanto, a perspectiva de vitimização dos povos oprimidos ao longo da história brasileira é substituída por um foco mais voltado para conflitos, insurreições e rebeliões. Os escravizados não abriram mão de ser agentes e senhores de suas vidas. Buscaram formas de reagir ao cotidiano violento no qual eram submetidos. Os descontentamentos e conflitos escreveram episódios importantes ao longo do período de extração do ouro em Minas Gerais, como resposta às tentativas de controle da Coroa portuguesa. “No final do século 18, palavras como revolução, motim, rebelião e sedição começavam a fazer parte do vocabulário cotidiano, anunciando muita comoção e grandes doses de mudanças.”

O século 19 trouxe mudanças definitivas. Desde a chegada da Corte até o grito de Independência, episódio que guarda versões e mitos no imaginário nacional, a sina de contradições no Brasil se mantinha inabalável. A saída imperial representou a justaposição de elementos novos e antigos. O império surgiu como símbolo da união territorial desse país de proporções continentais, mas o novo monarca continuava sendo português. O país continuaria um caminho tortuoso e turbulento durante os reinados de dom Pedro I e II. A monarquia tropical que se instalou por aqui seria marcada por tentativa de conciliação entre grupos dominantes, permeada por conflitos de interesses e disputas regionais.

A chegada da República, em 1889, fez com que vários símbolos fossem alterados. O objetivo era demonstrar que o novo regime – moderno e em franco crescimento no mundo – viria para ficar pelas terras tupiniquins. Nomes de praças, de colégios e de papéis- moedas do período imperial deram lugar aos novos símbolos republicanos. A Igreja se separou do Estado e foram introduzidos os registros civis de nascimento, casamento e morte. Era o momento do lema “ordem e progresso”. No entanto, outras características persistiram e foram até aprimoradas, principalmente nas relações de poder, em que o perfil oligárquico sofreu poucas mudanças.

O século 20 chegou com mudanças em ritmo acelerado no Brasil, como reflexo de um mundo cada vez mais urbano e com mudanças profundas nas relações de trabalho. As greves operárias ganham espaço, reforçadas pela presença de imigrantes italianos, espanhóis e portugueses, que exigiam mudanças nas condições de trabalho. As primeiras décadas da República mostraram também que, passada a euforia dos primeiros momentos após a Lei Áurea, em 1888, que aboliu a escravidão, as mudanças não passariam de falácias distantes de se tornar realidade. “Se ela significou um ponto final no sistema escravocrata, não priorizou uma política social de inclusão desses grupos, os quais tinham poucas chances de competir em igualdade de condições com os demais trabalhadores, sobretudo brancos, nacionais ou imigrantes”.

Trancos e barrancos

A população assistiu aos episódios curtos de democracia ao longo do século passado, com sucessões de golpes e ditaduras. As conquistas de direitos vinham aos poucos. O espaço para se manifestar por meio do voto aparecia em intervalos, que  eram seguidos por mudanças nas regras do jogo político. Foram décadas – primeiro com o Estado Novo de Getúlio Vargas, depois com a ditadura militar – de controle e repressão, em que o direito de livre expressão foi atacado de forma ferrenha. Novamente, nesse contexto de opressão aparece o caráter combativo e de resistência no povo brasileiro. Muitas vezes por meio de canções, que buscaram o tempo todo burlar a censura e perturbar o poder.

A redemocratização foi um processo lento, que contou com a movimentação nas ruas e nos gabinetes políticos. Desde a metade da década de 1970, o caminho para a democracia passou a ser trilhado de maneira tímida e marcado por injustiças e crueldades. “Demorou outros 10 anos até que o último general da ditadura deixasse o Palácio do Planalto, e a redemocratização seguiu aos trancos e barrancos.” E a entrada no jogo da democracia foi difícil e turbulenta.

No último capítulo do livro, as autoras analisam a paradoxal relação entre o regime democrático brasileiro e as injustiças sociais. A luta para a garantia dos direitos básicos para todos os brasileiros segue como a maior parte dos avanços conquistados nessa terra, de forma lenta. A escolha de Lilia Schwarcz e Heloísa Starling em não ultrapassar o ano de 1995 nas análises sobre a história nacional levou em conta a permanência no jogo político atual dos principais personagens que atuaram nessas últimas duas décadas. “Nos 20 anos que se seguiram, o Brasil introduziu nessa agenda democrática a luta contra a desigualdade social, mas ainda não a consumou – e a tarefa não será fácil. Três presidentes eleitos conquistaram, cada um, dois mandatos consecutivos: Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Nossa história termina aqui, com as autoras desconfiadas de que está incompleta. Mas termina, também, com as autoras desconfiadas de outra coisa: no Brasil, quem sabe, a democracia pode não ter um fim, e o futuro ser bom”.

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