Grandes ousadias, pequenas traições

Sem se prender à fidelidade histórica, autores de A morte de Stálin preferiram fazer registro mais expressivo do ambiente de terror daqueles tempos na União Soviética

por 02/05/2015 00:13
Editora Três Estrelas/Reprodução
None (foto: Editora Três Estrelas/Reprodução)
Valf


A expressão italiana traduttore, traditore (tradutor, traidor), denota, ao mesmo tempo, a complexidade e o peso do ofício da tradução. Parte do princípio de uma quase impossibilidade em se transcrever para outra língua, com perfeita exatidão, o completo sentido contido em uma ideia. Quando uma transposição de um meio para outro é feita, seja literária, cinematográfica, artística, muitas vezes a mesma percepção ocorre. Quantas pessoas, ao sair de uma seção de cinema, não são categóricas em afirmar que o livro em que o filme foi baseado é melhor? Ou mesmo o contrário?

A adaptação de um livro para o teatro incorpora novos elementos à obra. Figurinos, cenários, iluminação e as próprias interpretações dos atores. Adapte o mesmo livro para o cinema e ele ganhará movimento, trilha sonora, edição de imagens e um sem-número de variáveis inerentes ao meio. Ao contar os últimos dias do líder Josef Stálin, secretário-geral do Partido Comunista da antiga União Soviética,  os quadrinistas franceses Fabien Nury e Thierry Robin ousaram, com grande talento e pequenas traições, transpor história em estória, no belo álbum A morte de Stálin.

A concepção inicial do projeto partiu da paixão de Robin pelo tema. Depois de coletar e analisar seu vasto material de referência e ter desenhado cerca de 30 páginas de um esboço sobre a vida de Stálin, o ilustrador foi forçado a se curvar à impossibilidade da conclusão de seu projeto, que se mostrava demasiadamente ambicioso e, que só foi retomado quando Fabien Nury lhe apresentou seu roteiro sobre o tema.

Conhecido no Brasil pelo argumento da graphic novel Eu sou legião, em parceria com o ilustrador norte-americano John Cassaday (X-men, Planetary), Nury optou por contar sua estória não com a sequência surgimento/ascensão/queda do líder russo, como originalmente era o projeto de Thierry Robin, mas sim por um corte temporal. Seu roteiro se atém a um pequeno espaço de tempo compreendido entre os momentos que antecedem a morte de Stálin e os acontecimentos pós-funeral. Mais que histórico, no sentido da representação de fidelidade incontestável dos fatos narrados, seu texto busca enfatizar o clima e a tensão vividos e ser um registro mais expressivo do ambiente de terror que dominaria a União Soviética daqueles tempos.

A primeira sequência da HQ deixa bem clara a intenção do argumentista. Na sede da Rádio do Povo, em Moscou, a orquestra executa uma peça de Mozart. Apresenta-se ao vivo, como de costume, sendo a audição transmitida diretamente para os aparelhos radiofônicos de todo o país. O diretor da rádio então recebe um telefonema. Do outro lado da linha, Stálin, em pessoa, elogia a performance dos músicos e pede uma gravação do concerto. O problema é que a transmissão fora realizada sem nenhum registro fonográfico.

Em pânico, o diretor convoca toda a orquestra para reproduzir uma vez mais a obra musical. A jovem solista Mária Iúdina se recusa a tocar novamente. Após uma longa tratativa envolvendo ameaças e uma boa compensação financeira, todavia, muda de ideia. O maestro, acuado pela enorme responsabilidade de agradar ao todo-poderoso Stálin, não aguenta a pressão e desfalece. Na calada da noite, um novo regente é praticamente sequestrado em sua própria casa e levado à força para a sede da rádio. A gravação é feita durante a madrugada e um único disco com o registro da apresentação é prensado.

Na manhã seguinte, membros da polícia soviética levam a cópia contendo em seu interior uma carta de Mária Iúdina para Stálin. A carta, de teor agressivo e praticamente suicida, é lida pelo líder soviete, que, ouvindo o Concerto para piano nº 23 em seus aposentos, sofre um derrame e cai já quase sem vida. A leitura estritamente histórica desses fatos aqui descritos, porém, teria uma abordagem diferente. Mostraria que o telefonema de Stálin ocorreu anos antes de sua morte, não no dia anterior. Mostraria ainda que Mária Iúdina foi a pessoa buscada em casa, e não um regente. A solista, ao contrário de sua representação jovial na HQ, teria por volta de seus 50 anos.

A compensação financeira dada a ela veio do próprio Stálin, o que teria resultado, segundo relato da pianista a uma pessoa próxima, na carta ofensiva endereçada ao governante. E é quase certo que sua mensagem não tenha chegado a seu destinatário, pois nem mesmo seu prestígio seria capaz de impedir sua deportação para um dos muitos campos de trabalho forçado, os temíveis gulags. Com esta liberdade no roteiro, Fabien Nury subverte o fio temporal da narração e todas suas concepções.

Durante o restante da HQ, Nury reconstrói fatos e monta novas estruturas, entrelaçando acontecimentos históricos de épocas distintas e, de maneira hábil, conduz o leitor até o clima das ações, dando assim ritmo, fluidez e, sobretudo, ênfase à narrativa. O texto encontra um par afinado com a arte de Thierry Robin. O desenho refinado do francês, com sua ótima caracterização dos fatos e dos personagens, unidos a uma palheta de cores muito bem escolhida, dá uma bela unidade gráfica ao álbum. As duas páginas que mostram o cortejo fúnebre de Stálin são um exemplo disso.

A alternância de planos, explorada de maneira quase cinematográfica em cada um dos quadrinhos, conduz a visão do leitor por meio da ação. Inicia-se pela imagem em detalhe do líder morto em seu caixão, se afasta para o círculo intimista de Stálin, passa pela comoção da dor, pouco a pouco se afastando, até o derradeiro quadro final e seu apoteótico desfile mortuário em um plano geral mostrando a multidão na Praça Vermelha.

Duas solenes páginas mudas, sem nenhum texto, onde, agora, somente a imagem é que, de forma impactante, dialoga com o leitor. E é a soma de todos esses acertos que faz a beleza desta adaptação. Saber explorar bem as liberdades e possibilidades tanto narrativas quanto gráficas oferecidas pela nona arte e transformar um complexo campo situado entre ficção e história em um refinado jogo de interação entre linguagens.


* Valf é ilustrador


A mortre de Stálin
• De  Fabien Nury e Thierry Robin
• Editora Três Estrelas
• 152 páginas, R$ 42,50

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