Passeio por Lisboa

Em Requiem %u2013 Uma alucinação, o italiano Antonio Tabucchi adotou a língua portuguesa para melhor contar uma história fantástica feita de sonhos e encontros

por 02/05/2015 00:13
Morena Brengola/Getty Images
Morena Brengola/Getty Images (foto: Morena Brengola/Getty Images )
André di Bernardi Batista Mendes



A editora Cosac & Naify acaba de lançar Requiem – Uma alucinação, de Antonio Tabucchi. O italiano faz uma declaração de amor a Lisboa, cidade que adotou para viver e onde morreu, em 2012, e sobretudo ao português, idioma no qual escreveu o romance. No livro, lançado originalmente em 1991, o escritor escolhe um estado entre a realidade e o sonho.

O protagonista deambula pelas ruas da capital portuguesa num tórrido domingo de julho. Sabe vagamente que tem tarefas a cumprir, entre elas um encontro marcado para o meio-dia com o poeta Fernando Pessoa. No percurso errático em que vivos e mortos se encontram, ele revê pessoas do passado e tenta desatar alguns nós de sua vida.

Pois sim. Qual é a hora, qual é o dia mais apropriado para encontrarmos as pessoas que só existem dentro da gente, naquele baú de tesouros chamado memória? Por que as coisas acontecem desse modo específico? Antonio Tabucchi sabe que, antes de mais nada, é preciso uma alma enorme para os ditames da poesia. E é preciso dizer tudo isso em bom português. E vale a pena, pois toda língua é feita de espadas.

Um dia quente. É o mais indicado para conhecermos os fogos de nosso inconsciente. A alma é sempre sensível e esconde brumas. Existe um rio, ou vários, correndo dentro de nós e cipós. Lisboa é uma cidade que tem uma alma que olha para baixo, uma alma específica, uma alma longa, portuguesa que só Deus sabe. O escritor nos leva para passear nestas ruas feitas de pedras, feitas principalmente de pedras duras. É importante saber que existem vias e contramãos, vias que borram, veredas que bordam sentidos proibidos.

Em Lisboa, existe um cemitério. O Cemitério dos Prazeres. Lisboa é feita de ruas, como o Largo Camões, a Calçada do Combro, que fica próxima à Calçada da Estrela, passando pela Domingos Sequeira, que desemboca no Campo de Ourique, que por sua vez chega à Saraiva de Carvalho, até chegarmos, assim, ao cemitério supracitado.

Em Lisboa, existem restaurantes. Por ali existem sarrabulhos e receitas de sarrabulhos, e papos de anjo de Mirandela, doces de frutas, “tudo muito genuíno.” Palavras são portas, palavras indicam signos de sabores e cheiros. Palavras: Tabucchi se serve muito bem delas. Palavras são setas que atravessam o tempo todo. Dentro dele, do tempo, dentro das palavras existem vontades e carências, dúvidas e medos, sonhos e a esperança, que impulsiona e atiça todo o resto.

São caligrafias. São pinturas de Bosch. São desenhos. Tabucchi nos faz lembrar que existem textos que permanecem, que foram escritos em nós, alguns deles de forma indecifrável. São textos que também escrevemos, são textos que outros pintaram numa tela ofertada, palavras escritas num papiro estranho. E chega uma hora em que precisamos de tradutores. Quando buscamos, com urgência, uma certa continuidade, sem remendos.

Ou então, de outra forma, que é o mesmo volteio, quando buscamos pintar alguns traços, alguns garranchos plausíveis para tantos retalhos e fragmentos soltos que a vida leva e traz, pedaços soltos de encontros e desencontros, um sistema cheio de sinas e significados especialíssimos. O coração, a alma é uma espécie de mosaico. Temos uma alma caleidoscópica. O coração – e a memória – serve de bússola.

Tabucchi é um bom mestre de buscas e escolhas. Nada é aleatório em sua literatura, uma literatura feita de carinhos, humildade e um tanto de angústia. Ao percorrer Lisboa por meio da leitura dos olhos, descobrimos que todas as almas têm cheiro, algo perto do verniz, ou do mogno. Os personagens do livro, os fantasmas, carregam mínimos corações, carregam vontades quebradiças, frágeis e confusas. Nem a poesia dá conta de decifrar anatomias e presenças tão secretas quanto estranhas.

Trata-se da força das coisas que ficaram para o longe. “As coisas da infância nunca mais voltam”, ressalta um dos personagens de Requiem. A memória é uma espécie de bálsamo, de antídoto contra veneno nenhum. A memória é tal e qual o melhor vinho do Porto: “ligeiramente áspero, com um aroma intenso”.

A literatura de Tabucchi é, antes de tudo, uma ferramenta de evocações. A literatura deste grande escritor tenta recuperar uma porção de vozes, antes perdidas, jogadas por aí (guardadas num fundo precioso), com suas tonalidades, com os seus timbres peculiaríssimos. Trata-se de uma literatura feita de travessias. Antonio busca o outro – os outros – para chegar a si mesmo. Ele propõe um jogo cheio de segredos, ele nos conduz por um labirinto onde a palavra é uma chave feita de mistérios.

Estamos diante de um escritor ardiloso. Sua literatura guarda e esconde grandes perigos. Diante de uma suposta calmaria existe um turbilhão de águas acontecendo. Os melhores escritores não escrevem livros; eles montam armadilhas. E não há nada mais perigoso que a vontade. Memórias são vontades. Saudades, desejos, são vontades.

Tabucchi, a cada página, inventa engrenagens para reencontrar, ele almeja um buquê de sensações. Reencontrar tanto edifica quanto desfaz. O ofício litúrgico de Tabucchi busca o inverso do repouso, ele sugere movimento e significa também motivação para entendimentos. Tabucchi fabrica, engendra, concebe, é dono de engrenagens que colaboram para os melhores sonhos, que surgem dentro de histórias simples. Mas também fantásticas, enormes, de uma importância relativa. Só depende da coragem e da predisposição de quem lê. Está tudo ali.

Antonio Tabucchi é dono de uma retórica incendiária. Tabucchi embaralha uma sucessão de paradoxos, acasos, e mistura tudo isso num turbilhão de vertigens. Não por acaso, se muito me engano, foram os portugueses que inventaram o fado. Mas o escritor não explica. Amor, memória, ternura, mãe e pai: “Às vezes, uma sílaba pode conter um universo”.



REQUIEM – UMA ALUCINAÇÃO
. De Antonio Tabucchi
. Editora Cosac & Naify
. 128 páginas, R$ 32,90

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