Excluir e punir

Produções como o longa-metragem Casa grande mostram que a sociedade atual quer abolir a violência sem enfrentar as raízes do conflito, apenas pela supressão do problema

por 02/05/2015 00:13
fotos: Migdal Filmes/Divulgação
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Inez Lemos




O filme Casa grande, de Fellipe Barbosa, coloca em cena o debate das cotas raciais, personagem central no combate ao racismo no Brasil – enquanto o negro for excluído da sociedade, dificilmente será respeitado e acolhido. E para que a inclusão ocorra, ele deve participar das oportunidades que o país oferece. Sem educação de qualidade, sem a inserção no mercado de trabalho e, portanto, na sociedade de consumo, sempre será visto como marginal. A tríade negro, pobre e bandido ainda provoca ressonância nos remanescentes da Casa grande, cujo imaginário confunde favela com senzala, negro com escravo e pobre com bandido. As cotas são um dos projetos polêmicos que acirram as diversas formas de leituras do tecido político, social e cultural que vivemos.

Destacamos também o que prevê a redução da maioridade penal de 18 anos para 16. Interessa analisar o que subjaz ao projeto, quando esse defende interesses de segmentos sociais economicamente dominantes. Como entender famílias que se julgam do bem, honradas, concordar em encarcerar adolescentes que têm a rua como único recurso de sobrevivência, quando muitos são filhos de famílias abandônicas e desestruturadas? E, em função da falta de apoio e oportunidades, se lançam entre os desamparados e, com eles, ingressam no mundo do crime?

O argumento de que ao expulsar os adolescentes da rua por meio da repressão e punição iremos reduzir a violência é risível e despropositado. Sabemos que se repressão fosse a saída, a reincidência entre os encarcerados seria quase nula. Na defesa da exclusão da garotada que perambula pelas cidades, sem rumo e programas sociais eficazes, oculta o anseio pela sensação de proteção – fantasia de segurança. Excluir é mais fácil que educar, cuidar e prevenir.

Cuidar de uma sociedade exige estender o olhar do início ao fim – do momento em que a mãe engravida até o momento em que o indivíduo nasce, cresce e morre. Cuidar é mais promissor que abandonar – é mais barato educar bem uma criança, acompanhar sua trajetória e lhe garantir um futuro de oportunidades do que desampará-la e, depois de inserida em atos ilícitos, tentar recuperá-la. Diferente do que muitos afirmam, a maioria dos garotos de 16 anos não escolheram o crime como opção de vida – foi a vida que, ao não lhes garantir melhores oportunidades, os jogou na contravenção. Muitos nem sequer foram alçados a seres humanos e conscientes de seus atos. Agem como animais, movidos por instintos e alheios aos códigos civilizatórios. Excluídos da função paterna, operam fora da culpa. Apenas seguem os ditames do capitalismo cruel: matar para exibir o tênis de marca ou o último lançamento em smartphone.

Na cultura da ostentação reina o narcisismo individualista e imediatista, que espetaculariza a aparência e despreza a essência. Contudo, somos responsáveis pela demanda dos garotos por objetos de consumo – estilo playboy. Quando os exemplos entre os adultos não coadunam com os discursos moralistas cristãos, respaldados na ideia do livre-arbítrio, justiça e honra, fica visível o desejo insaciável em punir por punir, sem se preocupar em oferecer ao garoto chances de se recuperar. O apelo por justiça oculta vingança, maldade, preconceito e racismo. A eugenia é um projeto de limpeza, de higienização – excluir da praça os que incomodam.

Para que o princípio de realidade se sobreponha ao princípio de prazer, a criança deve ser interditada em suas pulsões perversas – limitada e contrariada em seu corpo pulsional, que berra, chora e exige o que lhe convém. Como bem nos lembrou o psicanalista Hélio Pellegrino: “O pacto edípico que garante o pacto social”. Exigir de um adolescente renúncia pulsional, sem antes lhe oferecer um outro destino às suas pulsões, seria acreditar em autoformação, autogestão.

Partindo do pressuposto de que ninguém se autoeduca, e que essa é função dos pais, talvez o melhor fosse criar leis que cobrem responsabilidade destes, e, em caso de descumprimento, recair sobre eles a punição devida. Quando um menor comete um crime, a Promotoria da Infância e da Juventude deve convocar os pais ou responsável e cobrar deles uma atuação mais fecunda junto ao delinquente. Para tanto, o Brasil deve intensificar as políticas públicas de planejamento familiar que assegurem à criança um lar estruturado. Gravidez na adolescência, a metáfora da banalização da vida.

A lógica do imediatismo não trata de ações preventivas, apenas paliativos que mais machucam, punem e pouco recuperam. Muitas vezes, o garoto parte para o crime como forma de reivindicar carinho e atenção. Sabemos que, ao ser privado de uma família que o acolhesse, muitos agem por revolta e vingança – cobram do mundo o que a vida lhes negou. Não devemos castigar e punir quem já é punido e castigado por sociedades excludentes, desiguais e injustas. Há de se descobrirem formas mais eficientes, justas e humanas de inserir o delinquente nos limites da lei. Não há impunidade para a criança que sofre privações afetivas e materiais, viver é a punição.

Para que o garoto respeite os códigos de convivência social e absolva as regras do bem viver, é preciso que, desde bebê, internalize as restrições e frustrações. A interdição no corpo pulsional provoca mal-estar, efeito da economia pulsional. Ao demandar uma sociedade menos violenta, devemos exigir propostas que visem cuidar e amparar o cidadão, oferecendo-lhe oportunidades, apontando direitos e cobrando deveres. Sem isso, ficamos apenas na retórica do dever cumprido, justificado pelo pagamento de impostos.

No século 19, Freud, ao intensificar seus estudos sobre a histeria, observa que onde havia um corpo urrando de dor havia um desejo reprimido – efeito da repressão sexual da época sobre o corpo feminino. É quando a literatura começa a se abrir para o desejo sufocado, proibido e tão bem retratado em Madame Bovary, de Gustave Flaubert. Nos romances, as heroínas vivenciavam relações sexuais extraconjugais, despertando o desejo entre as mulheres que, embora casadas, muitas não haviam experimentado o prazer sexual. Hoje, o sintoma social resulta do excesso de permissividade – ausência de repressão. Adolescentes que não são interditados em suas pulsões, quando deparam com a lei não a reconhecem. A sociedade de consumo explora a permissividade por ela ser rentável – vende de tablets a sapato de salto para meninas.

O declínio da metáfora paterna, quando os pais não impõem limites ao filho, culmina em jovens estúpidos. O show de violência, agressividade e desrespeito não se restringe às classes sociais. A roda que gira na senzala gira também na Casa grande. Um dia, as crianças de hoje serão os adultos desrespeitosos, machistas, corruptos e criminosos de amanhã. Sem consciência social, o Brasil da permissividade é um convite à ilegalidade e à corrupção. Criminalidade e função paterna – relação que inviabiliza responsabilizar apenas os garotos pela violência que aflige o país. A criminalidade não é apenas dos adolescentes, mas de toda a sociedade. Talvez o segmento social que mais esteja interessado na redução da maioridade penal seja dos que sempre lutaram por privilégios, e não por direitos. Punir e excluir a garotada das oportunidades e dos recursos públicos fere o conceito de res-publica – coisa pública.

O cidadão atual é um panicado, estressado. E anseia que algo aconteça e lhe devolva a tranquilidade de outrora. Sai do trabalho e, em casa, é bombardeado pela mídia sangrenta que, por sua vez, é alimentada pela cultura do estupor, disseminando terror e pânico. É de se esperar que se anseie em retornar ao paraíso, lugar sem violência, assaltos, crimes. Longe dos conflitos sociais e das penúrias impostas pela desigualdade social, educação frágil e paternidade e maternidade irresponsável. Contudo, a sociedade atual quer abolir a violência sem enfrentar as raízes do conflito, apenas pela supressão do problema – punindo e excluindo os negativos sociais. Não há dúvida de que, certamente, é sobre eles que a guilhotina recairá.

A subjetividade atual se caracteriza pela suspensão do pensamento, é quando o cidadão idealiza soluções fora do campo da reflexão, e, sem se implicar nas questões, se coloca passivo e alheio a tudo que o incomoda. É como se as agruras que o atingem fossem algo estranho a ele mesmo – não lhe cabe se ocupar ou tentar entender o mal que lhe acomete. Na inexistência de questionamento, o registro do pensamento fica suspenso. No jogo de omissões, implantamos o genocídio dos jovens e adolescentes, principalmente entre pobres e negros.

* Psicanalista
Email: inezlemoss@gmail.com

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