A essência revelada

Em compilação de entrevistas, o francês Henri Cartier-Bresson afirma que, para ele, a fotografia está a meio caminho entre a técnica do batedor de carteiras e do equilibrista

por 02/05/2015 00:13
Fotos de Henri Cartier-Bresson/Reprodução
Fotos de Henri Cartier-Bresson/Reprodução (foto: Fotos de Henri Cartier-Bresson/Reprodução)
Walter Sebastião



O epíteto “Pai do fotojornalismo” tão recorrentemente aplicado ao francês Henri Cartier-Bresson (1908–2004) com o tempo vai se revelando mais prejudicial do que esclarecedor. E o motivo é simples: vê-se hoje, mais do que quando o fotógrafo estava vivo, que as imagens dele transcendem, e muito, o jornalismo entendido como informação utilitária. Basta a mais ligeira observação das fotos do francês, seja de pessoas comuns ou de notáveis, registrando guerras e revoluções ou cenas do cotidiano, para observar como elas têm força plástica cativante que não está ligada a texto. Quando muito, despertam curiosidade de saber onde foram tiradas.

Diante do trabalho de Cartier-Bresson, a própria expressão “registro fotográfico” é limitada. O que se vê é uma vontade contínua de expressar e eternizar momentos brevíssimos de vida. Tema distante do jornalismo e que evoca, de fato, reflexões. Como a do poeta mexicano Octavio Paz (1914–1988) sobre o instante instaurado pela poesia que contém todos os instantes. E que, sem deixar de fluir, mostra-se repleto de si. As fotos de Cartier-Bresson têm espontaneidade, discrição e frescor tão acentuados que, no extremo, fazem muito a fotografia dita artística parecer artificial, exibicionista e tradicionalista.

Considerações nessa linha estão no livro Ver é um todo. Entrevistas e conversas – 1951–1998 (Editora G. Gili). Organizado por Julie Jones e Clémente Chéroux (especialista na obra de Cartier-Bresson), o volume foi editado em 2013 pelo Centro Georges Pompidou. São 12 entrevistas que cobrem desde a formação até as reflexões do fotógrafo. Registro de mirada radical: a busca de imagem que crie uma visão original do mundo e que só pode ser oferecida pela fotográfia. Às voltas com tal projeto, Cartier-Bresson fustiga provocativamente o esteticismo, as convenções artísticas, a representação, o valor documental da foto, o narrativo, a técnica.

O tema do jornalismo, por exemplo, quando associado a Cartier-Bresson, remete à criação por ele e outros fotógrafos, em 1947, da agência Magnum. Tempo do surgimento das revistas ilustradas, quando havia curiosidade sobre o mundo. “Hoje todos já estiveram em todas as partes”, analisa, explicando que se valeu do jornalismo para fazer o que queria. “Uma foto não quer dizer nada, não diz nada, não prova nada, nem mais nem menos que um quadro, ela é totalmente subjetiva. A única objetividade – e essa é a responsabilidade que sempre me impus – reside em ser honesto para consigo mesmo e seu objeto”, garante.

O que se descobre do fotógrafo por trás das câmaras, nas entrevistas do livro, é surpreendente. Cartier-Bresson gosta de tirar as fotos, o que, para ele, é praticamente só o clique e nada mais. Flash nem pensar. “A iluminação da vida não é assim”, justifica. Feita a imagem, ele não se interessa em ver o que fez, não gosta de cortes na imagem e tem declarada aversão por laboratório – prefere que o trabalho seja feito por amigos que conhecem a linguagem dele. O fotógrafo também não gosta de livros de fotografias e revistas ilustradas. “Prefiro olhar folhas de contato”, diz. Pouco participa da seleção das imagens, inclusive nas exposições.

Sobre o aprendizado fotografico, o fancês é ainda mais incisivo e irônico: basta ler o manual que vem com a câmera e com o filme, observa. “A captura da imagem se situa a meio caminho entre a técnica do batedor de carteiras e do equilibrista”, garante Cartier-Bresson. Por isso, pondera, “quando não há sensíblidade há barbárie”, já que a foto arranca alguma coisa das pessoas. “Fotos devem ser feitas de maneira instantânea e intuitiva”, ensina. Palavra de homem que se formou vendo arte, e que, como deixa transparecer, se preparou cultural e filosoficamente para realizar imagens a partir dessa atitude. Fotografar, garante, é atitude de vida.

Cartier-Bresson também não gosta de falar de fotografia ou de dar entrevistas (“prefiro conversas”). “Não gosto que me peçam para dar explicações”, acrescenta. E divertido, no livro, é ver as artimanhas dos entrevistadores para fazer Bresson falar. “A foto nunca foi um problema para mim, mas sim o olhar, a maneira de olhar, de interrogar com os olhos: não penso, sou impulsivo. É o olhar que importa, não a foto. Para enxergar direito, é preciso aprender a se tonar um surdo-mudo.”

Mestres, aponta o fotógrafo, são Rimbaud, James Joyce, Proust, Man Ray.“Pintura, pintura, pintura. A meus olhos, só existe isso. Desde o início”, diz o admirador de Ucello, Ticiano, Piero Della Francesa, Cézanne, Seurat, Goya, Daumier. Gosta, e muito, dos fotógrafos contemporâneos dele. Critica Richard Avedon, David Hamilton e Diane Arbus.

Cartier- Bresson também reduz a biografia a um enredo básico: quando jovem, foi apaixonado por pintura e desenho, sem gosto ou vocação para trabalhar na indústria do pai e que, para escapar desse destino, saiu de casa e foi perambular pelo mundo. Precisando ganhar dinheiro, o fez vendendo as fotos tiradas com máquina portátil à qual permaneceu fiel a vida inteira. A meta, explica, sempre foi a captura da poesia da vida real.

Ainda sobre o tema do instântaneo, esclarecedor é o declarado encanto com o budismo. “Não o espaço, mas o tempo, a duração infinitesimal, a plenitude do instante. No budismo é o instante é que conta. É preciso viver plenamente o instante, essa é a maneira de estar no que se faz”, argumenta, lamentando que os artistas olhem de menos e pensem demais.



Na estante
Cartier-Bresson em português


» Cartier-Bresson: O olhar do século, de Pierre Aussline (L&PM)

» Henri Cartier-Bresson: O século moderno, de Peter Galassi (CosacNaify)

»Tête-à-tête – Retratos de Cartier-Bresson (Cia. das Letras)

» Henri Cartier-Bresson – Fotógrafo, de Robert Delpire (CosacNaify)



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