Poesia furiosamente delicada

Fernando Paixão lança Porcelana invisível, consolida seu estilo e mostra que é um dos grandes nomes da literatura contemporânea

por 25/04/2015 00:13
Maíra Mesquita/Divulgação
Maíra Mesquita/Divulgação (foto: Maíra Mesquita/Divulgação)
André di Bernardi


Poetas são artíficies. Mas poetas são artíficies de quê exatamente? Do nada, do tempo, do barro, da terra, de sementes. Fernando Paixão publicou Rosa dos tempos, seu primeiro livro, em 1980. Depois disso surgiram Fogo dos rios (1989); 25 azulejos (1994); Poeira (2001, vencedor do Prêmio APCA); A parte da tarde (2005) e Palavra e rosto (2010). A Cosac e Naify acaba de publicar Porcelana invisível.

Pois tudo é absurdo. Tudo é sempre incongruentemente absurdo. Algo da ordem do muito grande acompanha, no paralelo, o ordinário, o simples, o fantástico que mora, astuto, no real e na realidade nossa. Os poetas amam, por isso mesmo, tanto bicicletas como as dissonâncias das engrenagens e os seus barulhos, como também a nossa estrutura inútil. Fernando Paixão não é diferente dos seus pares. Ele viaja a pé, e é capaz de “pedalar em branco”.

Poetas alucinam diante do futuro certo, improvável até a medula, no real. Somente poetas – e músicos – dizem réquiem, ombros, visita, pupila, faiança, preparação, feitiço. Esses entendimentos. Essas palavras que, dia menos dia, vão perdendo a graça e sua força de encanto e encontro. Mas poetas são artífices e a vida, eles dizem, é translúcida.

Cabe em Fernando Paixão um buquê, uma síntese enorme de perplexidades. As águas transbordam e fazem um trabalho limpo. As águas fazem caber o simples em toda grande poesia: “A chuva mostra/o pensamento/triste/da nuvem”. É que o poeta e a poesia tentam, inutilmente, organizar, por dentro e por fora, eles tentam apaziguar a tempestade, tentam fazer do barulho melodia. Eles chamam a nossa atenção para a força e a beleza das coisas enferrujadas. Eles ressaltam a existência dos espelhos, dos espelhos, essa espécie de porcelana mística, visível até certo ponto.

Trata-se de uma grande e rara capacidade de respiro. Essa coragem de descer profundamente para, só assim, melhor dizer dos nossos mistérios, enigmas feitos de pássaros, enigmas feitos de asas e incompletude. Isso tudo para, ainda que doa, revelar ânsias e anseios. Fernando Paixão mostra, por meio da poesia, que as pessoas, que as coisas, que o mundo é feito de sutilezas prontas. O precário, o frágil, porcelana, cristais, tornam-se, assim, algo precioso.

Quando faltam palavras, o corpo dança. A poesia oferece e é uma espécie de coreografia da literatura, dos sentimentos e das palavras de fogo. Pouco importa a razão e o entendimento, a dinâmica do processo. Porque o verde das árvores, até os pequenos espinhos e as rosas, porque a vida é frágil e a poesia vê sangrar os desacertos. O ouvido escuta, o olho vê. A atenção do poeta é sempre máxima; ele vai ao encontro de. A poesia resguarda, consagra, tenta preservar de algum modo tudo que desvanece rápido.

É dentro dos rumores – pode ser aquelas asas, aqueles pássaros –, dos burburinhos de águas, conluios baixos, que nascem os melhores versos vivos, as pérolas, fagulhas e acordes. É preciso treino e sangue, e uma delicadeza absurda para chegar ao “dia em que se pisa descalço sobre a beleza.”

Fernando modula e inventa uma voz para sua poesia, uma voz que sobe diferente a cada poema, a cada verso. O poeta muda de si mesmo para dar lugar, para deixar brechas, até sentir o vento delicado. O mar inventa e transforma de um jeito marinho, azul-marinho; árvores crescem, coloridas, de verdes e outras flores e folhas. Fernando descobriu um jeito diferente, mais verdadeiro, de enxergar peixes e pessoas. Ele respira e torce para tudo respirar melhor, mais fundo, tanto mais aberto o peito.

Vento pode ser brisa ou vendaval, mar é sinônimo de água viva. A poesia é uma forma de atualizar os movimentos, de expandi-los, quando muito, em lentas ou rápidas coreografias, aquela história da dança do corpo e das palavrinhas. A poesia é importante.

Mas, às vezes, contudo, surge pesado o peso da vida: “Palavras não bastam/o olho não sabe dizer: melhor ficar mudo”. O poeta e o enigma, o paradoxo, o dilema de todo artista: “A bem da verdade/nem sabemos de que lado do espelho/moramos”. É preciso acender as luzes dos poemas que se apagam.

INCÔMODO E SILÊNCIO  Fernando exige do leitor não menos que intensidades. Todo poeta é meio místico. Fernando é capaz de encontrar encanto tanto no voo alto quanto nas asas partidas; tanto na sabedoria das pedras, quanto nas rosas diáfanas, impossíveis de tanto silêncio e perfeição. “Quem aceita a noite/conhece a explosão/da tarde incendiada.” O poeta soube montar um mapa de desencontros: “Não tenho idade certa nem/a palavra que oferece abrigo/aos sonhos dos meus olhos”. Nada é tão complicado que, com o tempo, não se transforma em lágrimas.

Mas Fernando também fala, solar, sobre nossos “clarões diários”. Ele não estanca esse fluxo de luz, ele não interfere no voo dos pássaros, ele apenas realça a altura e o milagre da leveza. Servem para sua poesia os vazios, o silêncio, as pupilas dos gatos, os pontos cardeais, as águas, o mar, o fogo. Fernando sintetiza, como poucos, o incômodo, uma angústia que não é só dele: “Pouco sabemos/do tempo vindouro./As névoas/movimentam-se entre guindastes”. A poesia é o mais necessário, o mais interessante e completo toque de recolher. A poesia, feita de porcelana, é sempre insondável, e é sempre insurgente.

Fernando traz para perto, contudo, para o dia a dia, as coisas do seu ofício. Parece óbvio, sendo ele um poeta. Mal sabemos dos périplos e dos abismos que surgem nesses intervalos entre a vida e o que se escreve sobre e debaixo dela. Fernando tem o mérito de desejar, de querer que a poesia seja algo comum, doméstico, ao alcance das mãos, como uma fruta qualquer, como pão e água na cozinha. Sólida e serena, curta, ambígua e desconcertante, lírica e furiosamente delicada, como porcelana, a poesia de Fernando Paixão está ali, inteira, para ser útil.

PORCELANA INVISÍVEL

• De Fernando Paixão
• Editora Cosac & Naify
• 128 páginas, R$ 29,90

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