O timão e a coragem

por 25/04/2015 00:13
Douglas Alexandre/O Cruzeiro/Arquivo EM
Douglas Alexandre/O Cruzeiro/Arquivo EM (foto: Douglas Alexandre/O Cruzeiro/Arquivo EM)
Carlos Marchi Especial para o EM



Antes de começar a escrever Todo aquele imenso mar de liberdade, passei dois anos me perguntando se jornalistas têm histórias que mereçam ser contadas num livro. Mais objetivamente, me indaguei se o relato da vida de Castelinho – jornalista Carlos Castello Branco – preencheria pelo menos 250 páginas de um livro. Depois de amadurecer a ideia durante dois anos, concluí que a resposta para ambas as questões era “sim”. Só que 250 páginas foi pouco para contar a incrível história de Castelinho; Todo aquele imenso mar... tem 560 páginas.

O livro não é uma homenagem a Castelinho – é uma homenagem ao jornalismo brasileiro. Num momento em que alguns presumem que ele (o jornalismo) está morrendo, o livro pretende objetar com vigor: o jornalismo pode mudar de técnica, de linguagem, de olhar, de veículo, mas morrer, não. Ele nunca morrerá, porque as histórias de jornalistas – descobri eu agora – são incrivelmente vigorosas e, não raro, se confundem e se misturam com a própria história do país. É claro que foi mais fácil chegar a essas conclusões contando a história de Castelinho, o mais importante cronista político da história do Brasil.

Que significado ele teve para esse jornalismo do qual se tornaria símbolo? Castelinho tornou-se um paradigma do jornalismo por reunir uma invejável quantidade de qualificações extraordinárias em si mesmo e no seu trabalho. Primeiro, tinha um texto impecável, adquirido na leitura permanente dos grandes autores das literaturas portuguesa e francesa. O domínio fácil das palavras e do estilo fazia com que preferisse substantivos, dando-lhes uma aplicação justa, e desdenhasse adjetivos, que nele eram casuais e complementares. O domínio estilístico facilitou a estruturação da análise, sempre precisa e bem-articulada, sempre bem demonstrada, fruto da talentosa observação da cena política.

A ideia inicial era ser romancista; Castelinho começou no jornalismo para se sustentar e logo percebeu que o texto jornalístico era diferente do literário; no jornalismo, o brilho não significava produzir frases de efeito, mas alinhar análises claras e encadeadas por contextos precisos. O que deveria brilhar no texto jornalístico eram a clareza, o discernimento, a consistência e a lucidez da análise. Não descrevia fatos – montava contextos. Foi essa fórmula brilhante e única que fez dele um autor diferenciado no jornalismo brasileiro.

Castelinho tinha muitas fontes a lhe transmitir informações qualificadas. A quantidade ajudava a depurar a qualidade; checando e filtrando muitas informações ele conseguia atribuir acurácia ao conjunto de informações que apurava. Acurácia é um notável princípio do jornalismo que ensina: ter muitas fontes qualificadas presume a obtenção de muitas informações de qualidade. E ele melhorava essa equação: usava parte das informações na coluna e guardava outras para trocar com as fontes.

Castelinho não entrevistava suas fontes; conversava com elas, uma conversa sem pressão que tinha sempre o sentido da troca de informações. Para complementar esse estilo, tinha uma memória prodigiosa. Nunca anotava o que o interlocutor dizia; para ele, o repórter que anota tira a espontaneidade da conversa e deixa a fonte “armada”. E desarmar a fonte era o gesto suave capaz de deixa-la à vontade e para revelar naturalmente o que não diria sob pressão. Não era tudo. Acima dessas Castelinho ainda exibia duas qualidades excepcionais.

Uma era, a despeito de ser um homem frágil, a coragem desassombrada, capaz de dizer e escrever o que achasse necessário. Outra era o compromisso tácito com a verdade. Ao longo de mais de 50 anos de carreira, ele construiu a imagem de jornalista que cultuava a verdade por mais que ficasse difícil dizê-la. Esse conjunto raro de qualidades fez dele o melhor jornalista político da história do jornalismo brasileiro.

* Carlos Marchi é autor de Todo aquele imenso mar de liberdade (Editora Record), biografia do jornalista Carlos Castello Branco.


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