Cai mais uma barreira

Um dos mais elogiados romances de Milton Hatoum, Dois irmãos foi adaptado para os quadrinhos pelos gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá

por 11/04/2015 00:13
Glenio Campregher/Divulgação
Glenio Campregher/Divulgação (foto: Glenio Campregher/Divulgação)
Ubiratan Brasil



A literatura de Milton Hatoum é tão sedutora que não impede o rompimento de barreiras. Apesar de soar como uma tarefa quase impossível, o romance Dois irmãos já foi adaptado para o palco, prepara-se para ganhar a tela do cinema e agora chega em uma caprichada adaptação para os quadrinhos, realizada pelos irmãos gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá, em edição da Companhia das Letras. A obra, já disponível nas livrarias brasileiras, foi lançada internacionalmente durante o Salão do Livro de Paris, evento que reuniu o romancista e os quadrinistas para um debate.

Foram quatro anos de trabalho em um desafio lançado em 2009, quando, durante a Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, Moon e Bá conversavam descompromissadamente com Hatoum até que André Conti, editor da Companhia das Letras, notou que os artistas eram gêmeos como os personagens do romance. “Por que não levam a história para os quadrinhos?”, incitou Conti. Não se tratava de um desafio qualquer – publicado em 2000, Dois irmãos é um dos mais elogiados romances de Hatoum e acompanha o conflito entre os gêmeos Omar e Yaqub, descendentes de libaneses que vivem na Manaus da primeira metade do século passado.

Filhos de Halim e Zana, Omar e Yaqub enfrentaram uma grave discordância ainda meninos, divididos pelo interesse por Livia, o que provocou uma cisão familiar. Omar e Yaqub também são suspeitos de um deles ser o pai de Nael, filho de Domingas, a índia que é a empregada da casa. É sob o ponto de vista de Nael que a trama é narrada, história que, graças ao talento de Hatoum, ultrapassa a semelhança com a diferença bíblica entre Caim e Abel para, sob os ecos da floresta, tratar de ancestrais origens indígenas, da brutalidade da colonização, das vivências dos avós imigrantes e dos conflitos provocados pela passagem do rural para o urbano.

“Nesses quatro anos de trabalho, lemos o romance ao menos três vezes antes de começar os primeiros rascunhos”, conta Moon. “Queríamos interiorizar o ritmo da história, o clima da cidade.” A leitura, no entanto, não foi suficiente e os gêmeos embarcaram para Manaus a fim de descobrir pessoalmente, durante uma semana, a arquitetura que Hatoum recria de forma ao mesmo tempo crítica e carinhosa. “Concentramos nossa pesquisa no Centro da cidade, onde se passa boa parte do romance, um local que ainda apresenta resquícios dos anos 1920 e 30”, comenta Bá.

O passo seguinte foi definir qual seria o traço mais adequado e como seriam divididos os capítulos. A opção pelo preto e branco foi quase imediata, a fim de apresentar Manaus por meio de um jogo de luz e sombras, o que ressalta a dramaticidade. Logo que retornou do Amazonas, a dupla conversou com Hatoum, pois eles sentiam que a cidade do livro se transforma quase como um sonho. “E era importante captar esse clima”, justifica Bá. Os gêmeos também apresentaram ao escritor seus planos de como pretendiam registrar a casa e também os personagens.

“Milton foi muito generoso e nos incentivou, mas fez um importante reparo em relação a Zana”, conta Moon. “Pensávamos em uma mulher sensual, quase uma cigana, mas ele destacou que Zana é muito mais a mãe dos gêmeos que a mulher de Halim.” O recado deixou claro que o clima era mais sensual que vistoso e a paixão de Halim pela mulher deveria ser preponderante. “Milton até nos mostrou fotos de família que nos ajudaram a construir os traços físicos mais importantes”, completa Moon.

Durante o período de criação, a dupla trabalhou simultaneamente com outros projetos até se decidir a concentrar o foco em Dois irmãos. Afinal, era um projeto inédito em sua carreira – até então, Bá e Moon criaram histórias em sua maioria com final feliz, mas, desta vez a tragédia familiar apontou para novos caminhos. A adaptação da obra de Milton Hatoum é o primeiro trabalho de Gabriel Moon e Fábio Bá desde Daytripper, série vencedora do prêmio Eisner de 2011, o mais importante da indústria dos quadrinhos. E o escritor aprovou o resultado. “Quando observou o trabalho final, Milton parecia estar admirando fotos do passado”, conta Moon. “Foi como entrar em seu mundo imaginário, que ele reconheceu em nossos desenhos”, completa Bá.

DOIS IRMÃOS

. De Fábio Moon e Gabriel Bá
. Companhia das Letras
. 232 páginas, R$ 39,90

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