Viver para encontrar

Em O paraíso são os outros, Valter Hugo Mãe e Nino Cais mostram, com poesia e sensibilidade, a história de uma criança diante de um mundo que se revela possível de descobertas e fascínios

por 11/04/2015 00:13
Nelson D'aires/Divulgação
None (foto: Nelson D'aires/Divulgação)
André di Bernardi

“O inferno não são os outros, pequena Halla. Eles são o paraíso, porque um homem sozinho é apenas um animal. A humanidade começa nos que te rodeiam, e não exatamente em ti. Ser-se pessoa implica a tua mãe, as nossas pessoas, um desconhecido ou sua expectativa. Sem ninguém no presente nem no futuro, o indivíduo pensa tão sem razão quanto pensam os peixes. Dura pelo engenho que tiver e perece como um atributo indiferenciado do planeta. Perece como uma coisa qualquer.”

O escritor Valter Hugo Mãe explica que, depois de uma reflexão feita num dos trechos de seu livro, A desumanização, acerca da popular expressão de Jean Paul Sartre “o inferno são os outros”, surgiu a primeira fagulha para algo que iria se tornar um livro. Logo depois nasceu o belíssimo O paraíso são os outros. Dois artistas, um poeta e um homem das imagens e das formas, juntaram-se para celebrar a vida, para fazer poesia, para dizer, da maneira mais simples, um secreto óbvio.

Com texto de Valter Hugo Mãe e imagens do artista plástico Nino Cais, o livro fala sobre as descobertas de uma criança, de uma menina, diante de um mundo que se abre, diante de um mundo povoado de bichos e pessoas que se amam, apesar dos contrários. O livro fala sobre o amor e o modo de viver de casais variados. A menina investiga, aprende com a mãe, e cresce a cada página, a cada palavra. Valter escancara uma espécie de éden viável, feito de terra e ar, água e fogo. As palavras, as ideias de Valter têm a espessura de águas.

Sem amargura

Amor é aprendizado quando um outro olhar me completa. É básico e banal, que até a criança enxerga e gosta. Como nos versos de Arnaldo Antunes: “O seu olhar melhora o meu”. Como a personagem enxerga e os dois artistas ensinam, o amor é assim: “Há casais de mulher com homem, há de homem com homem e outros de mulher com mulher. Há também casais de pássaros, coelhos, elefantes, besouros, pinguins – que são absurdamente fiéis –, quero dizer: há casais de pinguins, e até golfinhos podem ser casais. Tudo por causa do amor”.

Para Valter, o universo não é feito de coisas, muito embora elas existam firmemente, casas, árvores, luas, mares, fiordes, países e estrelas. O universo literário de Valter é feito basicamente de gente, e alguns bichos. E o olhar carinhoso do poeta se volta, abre-se para emprestar um brilho novo e justo para os desvalidos, os pobres de tudo e de espírito, vagabundos, mães que abandonam e são abandonadas, os loucos e os seus cães, crianças – e principalmente elas –, empregadas domésticas, pensadores, filósofos de esquina e poetas da vida grande. Foi e é assim.

Depois de O nosso reino (2004), O remorso de Baltazar Serapião (2006), O apocalipse dos trabalhadores (2008), A máquina de fazer espanhóis (2010), O filho de mil homens (2011) e A desumanização (2013), entre outros – Valter tem também livros voltados para o público infantil –, o escritor, com este pequeno livro, deixa um pouco da lado a amargura, a desesperança e as sombras de outras obras para propor, para construir, como quem canta, um texto solar, apaziguado de águas límpidas, correntes de correnteza pura.

Certas preciosidades são imutáveis, dentro de um todo transitório. Outras apenas crescem, com suas luzes, sementes e perspectivas diferenciadas. É isso: “O amor é um sentimento que não obedece nem se garante”. E talvez isso seja também o mais importante de tudo: “Ninguém pode ser esquecido”.

Nascer é, de certa forma, errar. Nascemos tortos, feios, incompletos. Ali, naquele momento, e só naquele momento solitário, cabe o abismo de dizer: “O inferno são os outros”. Mas depois, aos poucos, inventamos ferramentas de sentir o vento, inventamos um maquinário de fazer encontros, uma engrenagem de produzir esperança, um engenho de fornecer carinho. Crescer é diferente de aumentar de tamanho ou ganhar idade. “A minha mãe diz que grandes são os que se corrigem. Para isso é preciso o auxílio do outro.”

Movimento

Valter Hugo Mãe embarca num percurso possível de esperanças e alegrias. “Imagino a vida dos outros. Não é por cobiça. É por vontade que dê certo.” Esse novo jeito reorganiza as coisas de dentro e de fora. Existe frescor nessas palavras, um algo livre, um movimento. As palavras são estranhas. É um processo estranho que passa, como mágica, a fazer parte do mais ordinário, das coisas vivas do dia a dia.

Viver é descobrir, para encontrar e ser encontrado. A menina do livro aprende e compartilha, feliz da vida. “A minha mãe explicou que o amor também é namorar com cuidado.” Essa poesia implica e abrange muitos e todos os sentidos, ela aponta para várias veredas dentro de uma mesma estrada nua. Cabe na prosa de Valter a fauna e a flora, jacarés, ursos-polares, cobras e gatos, muitos cachorros, e até vaidosas galinhas-d’angola. “Os bichos só são feios se não entendermos seus padrões de beleza. Um pouco como as pessoas. Ser feio é complexo e pode ser apenas um problema de quem observa.” É questão de predisposição para prendimentos: “Depois de entendermos melhor, a beleza comparece”. Brutos e desventurosos, felizes ou silenciosos, todos os personagens de Valter Hugo Mãe reluzem.

Dentro dos desencontros, o fogo, um choque de junções. Valter trabalha humildemente para fazer valer, para ver crescer as mais preciosas situações da nossa vida. Pois, segundo ele, é sempre o outro que nos ajuda a ir além dos nossos significados e da nossa superfície. Compartilhar necessidades e temores torna as desventuras menos severas e os temores mais brandos ao descobrir que somos feitos de luzes e sombras, que crescem quando vistas de fora. O outro é um raio de benigno brilho.

Pelo menos pode ser assim, no breve livro. Valter Hugo Mãe e Nino Cais celebram, na prática, o espírito da obra. O escritor, necessariamente solitário, ganha a companhia daquele outro essencial, nesse instante grande de sonho. Miragem, clareira, respiro, O paraíso são os outros pode ser um descanso entre uma sombra e outra. A função do escritor é tão somente transitar. Uma palavra define a literatura de Valter Hugo Mãe: comunhão. Por isso torna-se tão especial este paraíso. Valter e Nino fizeram um livro didático, que apenas convida e abre as portas para uma festa que pode, sim, começar agora. Como aprendeu a menina: “O amor constrói. Amar é um trabalho bom. A minha mãe diz”.




Valter Hugo Mãe

Nasceu em Saurimo, Angola, em 1971. Estudou direito e literatura portuguesa em Portugal, onde vive desde a infância. Escreveu diversos romances e poemas. Também escreveu livros infantojuvenis, entre os quais O rosto e As mais belas coisas do mundo, inéditos no Brasil. Esporadicamente dedica-se ao desenho e à música e apresenta um programa de entrevistas na TV portuguesa.




Nino Cais

Nasceu em São Paulo, em 1969. Formou-se em artes plásticas, também em São Paulo, onde apresentou em 2001 a exposição individual A trama rarefeita. É hoje um dos artistas brasileiros de maior destaque no cenário cultural.  A consolidação de seu trabalho veio em 2012, quando expôs na 30ª Bienal de São Paulo. Ele também já expôs em Portugal, França, México, Lituânia e Argentina.


O PARAÍSO SÃO OS OUTROS
. De Valter Hugo Mãe e Nino Cais
. Editora Cosac e Naify
. 32 páginas, R$ 36,90

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