Viagem para Brasilândia

Diferentemente da estética da fome do Cinema Novo ou das preocupações alegóricas do Cinema Marginal, o diretor Adirley Queirós filma a periferia com %u2018olhar de dentro%u2019

por 04/04/2015 00:13
Breno Fortes/CB/D.A Press
Breno Fortes/CB/D.A Press (foto: Breno Fortes/CB/D.A Press)
Stephen Bocskay



Não sabia quem ele era ainda. Conversando por telefone com minha companheira durante o último Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, ela recomendou alguns filmes, mas um em particular, e com muito entusiasmo: Branco sai, preto fica (2014), de Adirley Queirós, que não por acaso levou o troféu de melhor filme no evento festival – para não falar em outros prêmios importantes nacionais e internacionais.

Logo depois do Festival de Brasília, uma cópia do filme de Adirley chegou às minhas mãos. Assisti, fiquei comovidíssimo. “Preciso conhecer esse diretor”, pensei. Em dezembro de 2014, fui um dos convidados do 3º Festival de Curta-Metragem de Brasília. Sentado à escrivaninha no quarto do hotel, agarro o telefone e ligo para Adirley. Deparo-me logo com seu sotaque. O ritmo acelerado daquela fala evoca o drible de Pelé. Noutros momentos, assemelha-se à síncope da obra do João Guimarães Rosa. O meu ouvido se desloca ao sertão momentaneamente. Mas não há problema em nossa comunicação: a voz dele esbanja simpatia e solidariedade. Marcamos de nos encontrar no dia seguinte.

Em um boteco no Plano Piloto, tivemos uma conversa das mais estimulantes sobre os cineastas de cada região do Brasil. O tal “novíssimo cinema brasileiro” realmente existe? Se sim, como pode ser pensado? Quais são suas propostas? Quem são os cineastas mais ou menos politizados do momento no Brasil?

Quando voltei a Harvard, onde leciono cultura e literatura brasileiras, devorei os outros filmes de Adirley: Rap, o canto da Ceilândia (2005), Dias de greve (2006), Fora de campo (2010) e A cidade é uma só (2012). Ficou claro que iria incluir a filmografia de Adirley no meu projeto de pesquisa sobre arquitetura, urbanismo e afetos no cinema brasileiro contemporâneo. Nos últimos anos, tenho visto uma miríade de filmes brasileiros, mas poucos me atingiram tanto quanto os de Adirley. Por quê?

Sejamos claros. Há uma figura no cinema brasileiro que só surgiu no início do século 21: a do cineasta da periferia. Não é pouco. Nos Estados Unidos, por exemplo, quem se forma em cinema na faculdade e quer viver dele como profissão frequentemente corre atrás de empresários multimilionários para bancar o filme, porque não há políticas nacionais de cultura como no Brasil. Mesmo assim, a impressão que tenho de muitos cineastas brasileiros, principalmente aqueles de condições socioeconômicas mais privilegiadas, é que se importam demais com a opinião alheia. E se arriscam pouco.

O cinema de Adirley é sintético, vivo, pulsante. E, sobretudo, político. Ele historia o passado e o presente de um Brasil, esse imenso Brasil das cidades “periféricas” que a grande mídia faz questão de esconder e que tantos cineastas idealizam. Do primeiro até o filme mais recente dele, há a insistência em explorar, com toda a honestidade imaginável, a vida, a cultura e a luta política da Ceilândia – onde ele cresceu e mora. Não se trata do retorno à estética da fome do Cinema Novo ou às preocupações do Cinema Marginal. Diferentemente de quase todos (se não todos) os cineastas dessas vertentes, Adirley é da periferia e filma seu próprio contexto social.

MONUMENTAL

O olhar do diretor sobre Brasília propõe uma radicalização da política. Enquanto cineastas como Fernando Meirelles fazem filmes como Domésticas, em que as empregadas são retratadas de forma infantilizada em função do riso do patrão, Adirley semeia a destruição de Brasília. Mais especificamente, Branco sai, preto fica (2014) desveste Brasília de toda a sua monumentalização, colocando em primeiro plano um brutal apartheid racial e a quase total exclusão de afro-brasileiros.

Ele vai além das ideias do Ben Moser no ensaio Cemitério da esperança, centradas no policiamento moral de Oscar Niemeyer e em críticas à estética de prédios e do urbanismo, considerações que não se limitam a Brasília. Adirley, por sua vez, oferece uma profunda reflexão sobre Brasília que se elabora em fluxo contrário: da cidade satélite para o Plano Piloto.

A pergunta retórica “quem sou eu?”, tão comum em filmes do Cinema Marginal como O bandido da luz vermelha (1968), deixou de ser válida na obra de Adirley. Em quase todos seus filmes, músicos, rappers, DJs, moradores do bairro e ativistas políticos manifestam uma compreensão sólida da história da Ceilândia. A violência da história da cidade está latente nas iniciais de seu nome: Campanha de Erradicação de Invasões associado ao sufixo lândia.



PASSEIO

No longa A cidade é uma só (2012), dois moradores afro-brasileiros da Ceilândia andam de carro, o do próprio cineasta, pelo Plano Piloto. Só que nenhum dos dois tem intimidade com a cidade. Portanto, eles não sabem navegar pelas ruas. Ainda no automóvel, os dois homens vão em direção ao espectador, numa das muitas avenidas do Plano Piloto. O ouvido atento capta a música clássica da trilha sonora, que remete ao desvelamento dos valores simbólicos da lógica da capital. Essa imagem dos dois homens desorientados naquele carro sintetiza o Brasil atual. Por um lado, espelha o isolamento social que o automóvel produz; por outro, sugere que o Brasil não sabe que rumo escolher.

O Brasil vivencia um momento fecundo de sua história e, especialmente, de seu cinema. Aqui, divirjo da posição do grande Paulo José, que afirmou recentemente, ao jornal O Globo, que “o cinema brasileiro continua a fazer o pior cinema brasileiro do mundo”. Parece-me saudosista em demasia; pois os que fazem cinema por “necessidade de expressão” sempre foram poucos. Minha esperança é ver um cinema cada vez mais ousado, audaz e imaginativo como o de Adirley realizado por artistas dos territórios periféricos da sociedade.

Está na hora de os cineastas das classes mais abastadas no Brasil terem coragem de confrontar a si mesmos; o olhar de seu lugar da fala. Enquanto isso não ocorrer, não adianta medir o cinema atual com a régua do Cinema Novo, do Cinema Marginal e tampouco do cinema estrangeiro. Basta abrir os olhos e reconhecer o talento que está entre nós.

. Stephen Bocskay é doutor em estudos luso-brasileiros pela Universidade Brown e professor em Harvard

BRANCO SAI, PRETO FICA
. Cine 104, Praça da Estação, 104, Centro
. Sessões às 21h, exceto segunda e terça-feira
. Ingressos: R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia-entrada)

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