Livro destaca papel dos rappers brasileiros no questionamento social e político

Roberto Camargos, pesquisador da Universidade Federal de Uberlândia, mostra como o hip-hop se transformou no ''tribunal da opinião'' da periferia. Para ele, o rap reescreveu a história do país

por Ângela Faria 28/03/2015 00:13
Daniel Ferreira/CB/D.A Press - 15/4/06
''Se havia alguma dúvida sobre a sociedade brasileira ser completamente desigual, os rappers cuidaram disso, deixando tudo muito claro. Talvez por isso ainda hoje incomodem tanto'', diz pesquisador mineiro; na foto, Mano Brown, dos Racionais MCs (foto: Daniel Ferreira/CB/D.A Press - 15/4/06)
'Rap e política' (Editora Boitempo) registra o feliz encontro do universo acadêmico com a arte de rua. Fruto da pesquisa de dissertação de mestrado realizada pelo professor Roberto Camargos, doutorando em história social pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), o livro destaca o importante papel sociocultural de rappers brasileiros entre o fim dos anos 1980 e o início do século 21.


Boa parte desses artistas não apenas denunciou a crueldade do neoliberalismo e do “deus mercado”, tão enaltecidos no apagar das luzes do século 20, como conquistou – por meio da música – um território especial no jogo do poder. De um lado, o rap deu voz aos excluídos; de outro, criou o que Camargos chama de “tribunal da opinião”, questionando os rumos da sociedade brasileira. Com letras que retratam a profunda desigualdade social, o racismo e o preconceito, os rappers levaram a política para muito além da órbita institucional, colocando em xeque seus agentes profissionais e ação de sujeitos sociais organizados.


“O rapper cumpriu o papel de intelectual do seu tempo e espaço. A seu modo, ele reescreveu uma parte da história do Brasil recente, mostrando que a adesão a ideias e valores em torno do neoliberalismo não era consensual, que a cordialidade da sociedade brasileira não era a cordialidade do senso comum, mas aquela de Sérgio Buarque de Hollanda, pontuada por autoritarismo e violência, que visa, em última instância, à dominação. Mostraram também que a propalada igualdade racial é uma perversa mentira”, aponta Roberto Camargos. “Se havia alguma dúvida sobre a sociedade brasileira ser completamente desigual, os rappers cuidaram disso, deixando tudo muito claro. Talvez por isso ainda hoje incomodem tanto”.

O pesquisador destaca o papel do rap – um dos braços da cultura hip-hop, ao lado do grafite, do disc-jóquei e dos dançarinos – como arma para enfrentar o racismo. “Há extensa bibliografia que dá conta dessa questão, mostrando com detalhes o quanto ele foi – e é – importante na promoção da autoestima dos negros, na valorização de sua negritude e na denúncia do preconceito, que permanece arraigado e forte na sociedade brasileira. O maior legado dos rappers, certamente, está nessa questão”, acredita Roberto.


O autor ouviu nada menos de 10 mil músicas, consultou cerca de 100 entrevistas publicadas na imprensa e na internet, deu voz a dezenas de grupos, priorizando vertentes do rap voltadas para a denúncia social . A dissertação de mestrado defendida no programa de pós-graduação em história da UFU inspirou o ensaio que conquistou o prêmio Produção Crítica em Música, da Funarte. Roberto não limitou sua pesquisa a ídolos no universo do hip-hop, como Racionais MCs, Facção Central, Rappin Hood, GOG ou o carioca MV Bill. Artistas nordestinos, goianos, maranhenses, pernambucanos e mineiros, entre tantos outros, compõem o painel democrático exposto no livro. Estão lá Linha Dura, de Cuiabá; Washington Gabriel, de Teresina; Gil Custódio e Garnisé, do Recife; Gírias Nacionais, de Taubaté; Nando, Força Subversiva e Clã Nordestino, de São Luís; Proletários MCs, de Porto Alegre; Flávio Renegado, de BH; Circuito Negro, de Sobradinho; Testemunha Ocular, de Goiânia; Ilusão Obscura, de Salvador; Organismo Rap, de Uberlândia; e Davi Peres, de Florianópolis.

 

Flávio Renegado, de BH, é um dos artistas citados no livro

 

 

ANTICORDIAL Roberto concorda com analistas que têm apontado artistas como Racionais MCs, Facção Central, MV Bill e GOG, entre outros, como a “voz anticordial” da cultura brasileira, na medida em que combatem a visão da favela com barracão de zinco, chão salpicado de estrelas e braços abertos à gente “do asfalto”. Uma das letras do Racionais, lançada no início dos anos 2000, dispara: “Playboy bom é chinês, australiano/ fala feio, mora longe/ E não me chama de mano”. Por sua vez, Facção Central avisa: “Aqui é só outro mano sem boné, sem estudo/ Sem currículo, curso, talvez sem futuro/ Entendeu, dono do iate, o apoio da favela?/ Faço parte dela, sou fruto da cela/ Não deram faculdade pra eu me formar doutor/ Então a rua me transformou no demônio rimador (...) Programado pra rimar, buscar a igualdade/ Pra ser a ameaça pra sociedade/ Oficial de Justiça não apreendeu meu cérebro/ Dentro e fora da cadeia, locutor do inferno”.

Para o pesquisador, o rap é uma espécie de trilha sonora da luta de classes. “Eles (os inimigos) foram condensados no conceito amplo de boys, que entrou no vocabulário dos rappers já no início dos anos 1990, abarcando o ‘doutor’, o ‘empresário rico’, o ‘gerente’, a ‘classe rica’, o ‘monstro do horário político’ e por aí vai. Esses compositores elegeram, em especial, a classe média e setores da elite política e econômica como alvo para seus ataques, o que revelou em alguma medida uma sensibilidade popular conflituosa. Ao cantarem que ‘o mundo é diferente da ponte pra cá’ ou que ‘tem um muro de lágrima entre o pobre e o boy’, o que está em pauta é uma das dimensões da luta de classes”, diz Roberto.

 

'Da ponte pra cá', dos Racionais, representa "voz anticordial" citada por Camargos

 

 

O professor da UFU acredita, porém, que essa produção cultural não se destina apenas aos “manos”. “O rap tem cor, lugar e classe social. E faz questão de não apagar sua cor, seu lugar e a classe social de sua poética. Mesmo sendo majoritariamente porta-voz da favela, da periferia, ele dialoga com outros setores da sociedade brasileira e, ao menos potencialmente, tem tudo pra se fazer ouvir da ponte pra cá. O problema é que da ponte pra cá, onde estão aqueles que recebem na cara as bofetadas que os rappers produzem, é preciso, como pontuou Maria Rita Kehl, que se veja o rap não como provocação ou insulto, mas como um desabafo compartilhado”.

Frequentemente acusado de glamourizar o crime, o rap é associado à apologia da violência. Para Roberto Camargos, essas críticas estão ligadas ao fato de os versos serem portadores de “sentimentos indigestos”. “Mais do que trazer a violência para o campo da música popular, os rappers se dedicaram a eleger os responsáveis pelo estado de coisas do Brasil contemporâneo. Em algumas de suas narrativas sugerem o revide, sinalizam o ódio e a violência como resposta daquele que ‘só queria rimar choro de alegria’, mas se vê sofrendo as perversidades de relações sociais completamente assimétricas, discrepantes. Nesse processo, reforçam-se as fronteiras entre o eu e o outro, eliminando-se quase que por completo as perspectivas conciliatórias, muito comuns no universo da canção popular”.

Entretanto, Roberto destaca que boa parte dos ataques ao rap vem da escuta não muito cuidadosa de suas narrativas. “Pelo que pude notar em minhas pesquisas, essas letras são mais portadoras de uma lição moral que prega a paz e a vida honesta do que qualquer outra coisa. Falam do crime e da violência, mas têm um caráter pedagógico que termina por refutar tais práticas.” Ele cita como exemplo Eu sou 157, clássico do Racionais MCs. “A vida de um ladrão de mal com o mundo é esmiuçada, revelando os problemas e também o glamour do crime, questões sintetizadas no refrão. Ao final, entretanto, Mano Brown sai do personagem ‘ladrão-artigo 157’ e se coloca como rapper, lançando um comentário crítico: ‘Vem fácil, vai fácil/ Essa é a lei da natureza (...) molecadinha, tô de olho em vocês, hein?/ Não vai pra grupo não, a cena é triste/ Vamo estudar, respeitar o pai e a mãe/ E viver/ Viver: esta é a cena.”

Posteriormente ao período focalizado no livro de Camargos, a sociedade brasileira experimentou profundas transformações A favela mudou, houve a ascensão da chamada “nova classe média” vinda das periferias, o rap adotou novos temas. Artistas radicalmente refratários à grande imprensa e à indústria cultural flexibilizaram essa postura.

Nesse contexto, o pesquisador vê o hip-hop como parte de um processo. “Em meio a um movimento muito complexo de rupturas e continuidades, penso que a pegada política e de denúncia ainda continua como uma das principais marcas do rap. As narrativas certamente mudaram, mas não foram diluídas ou arrefeceram em decorrência de umas tantas melhorias vivenciadas pelos mais pobres nos últimos anos”, conclui Roberto Camargos.

VOZES DAS MARGENS
O pesquisador Roberto Camargos participa do projeto coletivo Vozes das margens, que vem mapeando e registrando a prática do rap com o objetivo de produzir um documentário sobre artistas do Triângulo Mineiro e do Alto Paranaíba. “Estamos localizando MCs, DJs, produtores e beatmakers para levantar vídeos, fotos, cartazes, etc. Vamos produzir documentação a partir de entrevistas e registros do cotidiano. O documentário deve ser concluído no início de 2016”, conta ele. Quem quiser conhecer o trabalho pode acessar o site www.vozesdasmargens.com e a página do projeto no Facebook.

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