Exercício da imaginação

Livro do carioca Rodrigo Lacerda ajuda a compreender Hamlet, a obra-prima do dramaturgo inglês William Shakespeare. Com habilidade, ele conduz o leitor como se fosse um espectador

por 21/03/2015 00:13
Helena Miscioscia/divulgação
Helena Miscioscia/divulgação (foto: Helena Miscioscia/divulgação)

 

Rodrigo Lacerda não traz às paginas de Hamlet ou Amleto – Shakespeare para jovens curiosos e adultos preguiçosos os 4.056 versos da obra original. Mas todas as cenas dos cinco atos escritos pelo bardo inglês estão nessa obra. William Shakespeare (1564-1616) comumente provoca o leitor de qualquer cabedal. Seja pela métrica, seja pela engenhosidade da trama, o dramaturgo mais celebrado do planeta é osso para muita gente. Rodrigo vem oferecer ao “espectador” uma versão comentada, em exercício eficiente de provocação. O texto de quase 300 páginas celebra a imaginação e fortalece a cumplicidade entre autor e leitor.

Até alcançar o ponto de encarar Shakespeare com a liberdade de aplicar “dois ou três cacos”, Rodrigo abraçou outras duras empreitadas na tradução: O conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas; Salomé, de Oscar Wilde; O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson; e Palmeiras selvagens, de William Faulkner. Sem falar na trajetória autoral que lhe rendeu reconhecimento e premiações importantes – O mistério do Leão Rampante (Prêmio Jabuti), O fazedor de velhos (Prêmios Glória Pondé, Jabuti e FNLIJ) e Outra vida (Prêmio da Academia Brasileira de Letras), para citar apenas três.

Neto do jornalista e político Carlos Lacerda (1914-1977), o carioca Rodrigo nasceu em 1969. Desde os 22 anos, o escritor e editor mora em São Paulo. A paixão por Shakespeare veio de um desafio: jovem ainda, quando recebeu a obra completa, em inglês, do dramaturgo, ele se sentiu incapaz de desvendar o presente do pai, o editor Sebastião Lacerda. Tempo passado, Hamlet ou Amleto é obra de quem aprendeu a superar a métrica original do pentâmetro iâmbico. Mais que isso, é exercício de imaginação para atores e não atores, iniciados e iniciantes. Com o auxílio de Rodrigo, nem é preciso amar Shakespeare para ler Shakespeare com gosto.

Ainda que Hamlet esteja entre os textos mais encenados e traduzidos no mundo, o autor consegue alinhavar com riqueza de criação a obra original e, de fato, fazê-lo mais atraente ao leitor mais preguiçoso. Na cena em que Laertes, filho de Polônio, está diante do rei, Rodrigo traduz e simplifica:

“Laertes tem um pedido, e o rei, antecipadamente, se diz inclinado a satisfazê-lo, num floreio de bajulação para aliado político nenhum notar defeito:

O cérebro não está mais ligado ao coração,

Nem a mão é mais útil para a boca,

Do que o trono da Dinamarca ao teu pai.

O rei diz isso porque Polônio, o pai de Laertes, não é um conselheiro qualquer. É o conselheiro sênior, o lorde camerlengo, funcionário-chefe da corte e responsável por organizar todas as funções. Manda muito”.

AJUDA Em poucas palavras, o autor-tradutor toma o leitor-espectador pela mão, sem diminuir-lhe a inteligência, e o ajuda na compreensão de pelo menos três personagens: Laertes, Polônio e o rei. Importante destacar que Rodrigo já trouxe Hamlet à cena, desde a primeira página, com habilidade extraordinária para ganhar a freguesia. “Agora você é um ator de teatro – isso mesmo – e pela primeira vez ganhou o papel principal. A estreia acontecerá logo mais tarde. Seu personagem é um jovem príncipe dinamarquês angustiado, que durante cinco atos se debate consigo mesmo e com o mundo. Pedreira… mas a dificuldade faz a consagração”, escreve.

Pode até parecer atrevimento ler pelo leitor. Não é. As metáforas e a poesia do texto continuam vivas nas entrelinhas de toda a ação dramática. Com algo a mais: um comentarista habilidoso, um guia atento às armadilhas da leitura, que, por vezes, traz auxílio de outros estudiosos da obra. Com o apoio de Rodrigo, ganham-se tempo e clareza na compreensão de tudo o que é movediço em Hamlet. “Imagine agora, meu caro príncipe aflito, que você assistiu na Dinamarca, de um ponto de vista privilegiado, ao clímax do processo de centralização política que fez de reis relativos reis absolutos. Ele aconteceu durante o longo e vitorioso reinado de ninguém menos que seu pai. Sim, daddy, o velho Hamlet, que é também o seu nome”, registra ele.

ENTREATOS Rodrigo Lacerda faz uso dos quatro intervalos para aliviar o rumo do “leitor-ator-espectador”. Com Shakespeare, se o público pode se perder na plateia, imagine, então, dentro da trama – porque é isso o que o autor-tradutor faz com o leitor: coloca-o na cena frente a frente com cada um dos personagens. Nos entreatos, contexto e abordagem histórica para levar ainda mais emoção à contracena de Hamlet Jr.:

“Todo momento da história, todo povo e toda civilização têm uma base filosófica. Ela está sempre mudando, lenta ou rapidamente, mas nunca deixa de existir. Sua transformação se manifesta em diversas áreas, e você, meu caro protagonista estreante, para entender seu personagem, precisa saber qual era a base filosófica da Inglaterra shakespeariana. Precisa também perceber como Shakespeare trabalhava essa convivência de valores, muitas vezes contraditória, anacrônica, cheia de remendos e linhas soltas”.

O leitor, Hamlet, não podia avançar no terceiro ato sem compreender a “lei natural” atrelada ao conceito do “encadeamento dos seres” decifrado por Rodrigo. “Todo ser vivo e todas as coisas tinham seu lugar definido no mundo, acima e abaixo de algum outro ser ou coisa. Os homens ficavam abaixo dos anjos e acima dos animais; o ínfimo inseto ocupava um lugar abaixo de um pombo, que por sua vez estava abaixo do leão, ou do elefante e de uma baleia, se você preferir”, explica.

Isso, para esclarecer objetivamente que entre os humanos, entre os personagens da trama, também havia uma hierarquia natural que não poderia ser quebrada. Rodrigo exemplifica que cada papel na obra de Shakespeare tem uma posição social evidente – o rei, o conselheiro-chefe, os guardas, o diplomata, os atores, o estudante, a donzela aristocrata. Sendo assim, se o tio do protagonista assume o trono sem merecimento, de fato merece a morte. “É sua obrigação recolocar o mundo em ordem, como você mesmo já disse:

Tempos fora do eixo. Oh, maldito fado,

Eu ter de corrigir o que está errado!”

No ato que segue, são três páginas dedicadas ao monólogo mais célebre de todos os tempos. Tão famoso que o autor, aqui, no melhor dos sentidos e das intenções, faz uso e abuso da provocação:

“Ser ou não ser, eis a questão.

Para não conhecer o primeiro verso desse novo monólogo, o espectador precisa ter um índice elevadíssimo de isolamento mental, social, cultural, profissional, geracional, nacional, animal, irracional e abdominal. O verso não é tão famoso por acaso. Ele diz muitas coisas ao mesmo tempo. A ação exigida deve acontecer, ou não? Você morrerá ao atentar contra a vida do rei? Se a vida é tão cheia de problemas, não seria mais racional terminá-la? O suicídio não seria a melhor opção? Como fazer a vida valer a pena?”

Merece destaque o encontro de Laertes com Ofélia, a irmã morta no quarto ato: “O irmão quer chorar, mas é soldado, com brios de macheza, e dá a si próprio uma desculpa maravilhosa, quase de humor negro, para não derramar uma lágrima:

Já tens água demais, oh, pobre Ofélia,

Por isso proíbo-me de chorar”.

Rodrigo comenta: “Não é maravilhosa? Só que ele chora mesmo assim”. E volta aos versos do bardo:

“No entanto,

É do homem chorar; a natureza impõe exigências,

Que a calúnia diga o que quiser. Findas as lágrimas,

Expulsarei meu lado feminino”.

E o autor volta a observar: “Laertes tem seus momentos bonitinhos… apesar da ideia meio machista de associar emotividade ao sexo feminino, ele sofre sinceramente pela irmã. E sai de cena cabisbaixo, amolecido pelo choro”.

O quinto ato leva o título de “Ninguém é de ninguém em Elsinore”. Nele, o autor-tradutor prepara o leitor-espectador para o grand finale de Hamlet ou Amleto. Recorta e comenta observações críticas de outros estudiosos da obra shakespeariana, traz à luz entendimentos bem particulares da ação trágica e dos motivos do protagonista.

Hamlet Jr., o leitor-espectador, de dentro da cena, no intervalo do último ato, é levado a absorver C.S. Lewis, no entendimento de Rodrigo: “Você é um homem cuja mente está na fronteira de dois mundos, incapaz de aceitar ou rejeitar de vez a existência do sobrenatural, lutando para atingir um objetivo, como sempre estamos, e no entanto incapaz de atingi-lo por não entender a si próprio ou às engrenagens que regem a vida”.

No desfecho do ato que segue, com a morte da família real, o comentarista arremata: “Uma coisa porém é certa: se Hamlet encontrou a paz, para a Dinamarca tudo acabou da pior maneira possível. A família real morreu inteira e o reino acabou anexado à Noruega. Mesmo depois de interrompido o curso do mal, as ambiguidades da peça não terminam. A justiça foi alcançada, mas a um custo gigantesco”.

Cai o pano.

 

 

 

 

 

HAMLET OU AMLETO?

Shakespeare para jovens
 curiosos e adultos preguiçosos


De Rodrigo Lacerda

Editora Zahar, 296 páginas

R$ 39,90 e R$ 24,90 (e-book)

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