Encruzilhada de culturas

Jerusalém, de Yotam Ottolenghi e Sami Tamimi, revela as delícias e os mistérios da gastronomia de uma das cidades mais emblemáticas da história da humanidade

por 21/03/2015 00:13
Adam Hilton/divulgação
Adam Hilton/divulgação (foto: Adam Hilton/divulgação)
Eduardo Tristão Girão










 













Filho de um italiano e uma alemã, o chef Yotam Ottolenghi nasceu em Jerusalém. A mistura já começa aí. Foi nessa cidade que ele cresceu: das mais antigas do mundo, disputada entre palestinos e israelenses, encravada entre três continentes e considerada sagrada para cristãos, judeus e muçulmanos. São elementos suficientes para a formação de uma culinária diversa, influenciada por pessoas de origens tão distintas como Líbia, Etiópia, Romênia, Uzbequistão e Argentina – num fluxo intermitente. Traduzir isso num livro de receitas seria tarefa das mais difíceis, mas a forma como Ottolenghi e o chef Sami Tamimi o fizeram resultou no atraente Jerusalém, recém-lançado no Brasil.

A dupla  Yotam Ottolenghi e Sami Tamimi não tem o objetivo de entregar uma obra definitiva sobre o tema, muito menos de caráter acadêmico. Mesclando receitas e belas fotos com textos curtos sobre hábitos, histórias, tradições e peculiaridades dos moradores da cidade, os autores conseguiram um livro leve e interessante. Por vezes, oferecem informações coletadas de conhecidos, como o costume de secar figos no telhado debaixo do sol quente de verão, o que despertava no menino Jabbar (amigo de infância de Tamimi) incontroláveis desejos de visitar furtivamente o topo da casa.

Já na casa do melhor amigo de infância de Ottolenghi, o descendente de judeus alemães Yoni, a matriarca costumava preparar pratos de tradição centro-europeia enquanto, naturalmente, absorvia influências locais. Provavelmente como resultado dessa mão dupla culinária, surgiu ali uma salada parecida com o tabule: muita salsinha, limão e grãos de cevada (no lugar do trigo), além de queijo feta, castanha-de-caju e especiarias.

Para se ter ideia da encruzilhada cultural que ocorre àquelas mesas, um dos melhores exemplos parece ser o sabih, receita que o livro informa não ser de Jerusalém, mas criada por judeus iraquianos radicados em Ramat Gan, cidade vizinha a Tel Aviv. Sobre uma fatia de pão sírio coloca-se berinjela frita (apreciada por árabes e sefarditas), tahine (idem), zhoug (pasta apimentada de judeus do Iêmen), picles salgado de manga (influência indiana), ovo cozido (básico da cozinha sefardita) e algo tanto judeu quanto árabe: salada picada.

Também aparecem nas páginas de Jerusalém os turcos (do Restaurante Azura, famoso pela berinjela recheada com cordeiro e pinoli e pratos de cozimento lento), os iranianos (com suas receitas aromáticas à base de açafrão, laranja, ervas e, obviamente, pistache), os georgianos (e seus pãezinhos acharuli, recheados de ovo e queijo) e os marroquinos (com os charutos de massa filo recheados, febre em cerimônias de bar mitsvá e casamentos judeus), entre vários outros povos.

Despretensiosamente, exemplos assim ajudam o leitor a construir uma imagem diferente de Jerusalém. Ao longo do livro, os autores reservam espaço para textos curtos sobre algumas das receitas mais populares da cidade – e igualmente conhecidas no Brasil. A começar pelo babaghanouj, a pasta de berinjela, que, revelam Ottolenghi e Tamimi, divide opiniões no que diz respeito ao uso ou não do tahine (pasta de gergelim). Há quem defenda a iguaria apenas com limão, alho e azeite.

Aprende-se sobre o quibe, considerado um salgadinho pelo brasileiro: fazer a camada fina (que não se rompa) para envolver o recheio é habilidade altamente valorizada por árabes e judeus, indicativo tradicional de aptidão doméstica feminina. A versão tradicional dos sírios e libaneses é recheada não apenas com carne e especiarias, mas também com pinoli. Judeus de países vizinhos costumam cozinhar o quibe em caldos em vez de fritá-los.

Fala-se também do falafel, do cuscuz, do zaatar (tempero típico), da berinjela, da bureka (salgado preparado com massa folhada), do homus e do tabule. Aliás, o pequeno texto dedicado a esse último esclarece: trata-se, essencialmente, de uma salada de salsinha, e não de trigo, apesar das variações de proporção entre os dois ingredientes encontradas nas receitas de libaneses e palestinos. Já o homus, aqui encontrado somente como pasta à base de tahine e grão-de-bico para passar no pão, é apresentado também como prato, coberto com pedaços de cordeiro, pinoli e molho de limão.

Como a dupla de autores explica na abertura, há receitas apresentadas da forma tradicional e outras adaptadas para os tempos atuais, além de algumas livremente modificadas por eles. O modo de vida ocidental e ideias de rapidez de preparo e leveza (menos gordura) orientaram a forma final dos pratos. Assim, são reapresentados preparos tradicionais que, curiosamente, parecem mais atuais do que nunca. Afinal, quem não conhece o shishbarak palestino ou o manti turco facilmente imaginaria que usar iogurte no molho quente para massas é coisa de nutricionista.

JERUSALÉM
. Sabores e receitas

• De Yotam Ottolenghi e Sami Tamimi
• Editora Panelinha
• 319 páginas, R$ 99,90

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