Muito além da missão francesa

Livro organizado por Fabiana Werneck Barcinski oferece novo olhar sobre a arte brasileira. Ensaios abordam de gravuras pré-históricas à produção dos anos 1960

por 21/03/2015 00:13
Albert Eckhout/reprodução
Albert Eckhout/reprodução (foto: Albert Eckhout/reprodução)
Antonio Gonçalves Filho

A tela Arrufos, exposta em 1887 por seu autor, Belmiro de Almeida, marcou uma revolução estética dois anos antes da Proclamação da República. No lugar do imperador e figuras ilustres, o pintor, ainda que por influência dos realistas europeus, pinta um casal burguês após uma discussão. A mulher chora sobre o sofá, enquanto o marido, indiferente, exerce seu papel de patriarca arrogante. Não era um tema comum para a sociedade brasileira da época, assumindo que o pintor toma a defesa da mulher ao retratar o marido como um chauvinista. Por que o pintor, que não ignorava a academia, desprezou os temas históricos para se ocupar de cenas domésticas?

A resposta está em Sobre a arte brasileira (Editora WMF/Martins Fontes e Edições Sesc), que chega às livrarias em abril. Com organização de Fabiana Werneck Barcinski e participação de diversos especialistas, o volume pinta um panorama completo da arte brasileira, da pré-história aos anos 1960, a década prodigiosa que alterou definitivamente os rumos artísticos de um país historicamente marcado pela presença estrangeira.

Já no primeiro capítulo é possível atestar o empenho dos autores em promover uma revisão histórica, ao incluir nele gravuras rupestres e artefatos indígenas. É legítimo falar em “arte brasileira” com características próprias e espaço definido sem tocar no assunto? O historiador Francisco Alambert, que defende a necessidade de uma história social da arte brasileira, lembra a urgência de reavaliar todo o processo que desemboca na modernidade para que, no futuro, os escolares não sejam obrigados a engolir mais uma vez que a arte brasileira começa com a vinda da missão francesa ao Brasil.

A respeito do olhar estrangeiro e da representação do Brasil por artistas franceses como Debret ou holandeses como Eckhout, um capítulo inteiro analisa as circunstâncias históricas da vinda dessas comitivas ao Brasil, propondo uma questão curiosa: por que não é conhecida nenhuma representação visual da natureza na colônia por um artista português em data anterior ao século 18? – a exceção fica por conta do frei franciscano Cristóvão de Lisboa. Resposta: porque a noção de desenho, entre os portugueses, estaria estreitamente vinculada à manufatura, ao caráter instrumental das academias militares, defendem os autores. Portugueses treinavam desenho com base em manuais, não a partir da observação da natureza. Ao contrário do desenho naturalista de Debret, o português tendia a geometrizar as formas.

Pode parecer boutade, mas isso talvez explique algo a respeito da “vocação” construtiva da arte brasileira. No capítulo dedicado às relações entre a academia, a natureza e a política (entre 1816 e 1857), parece estranho aos autores que dom João VI, de uma família expulsa da Europa por Napoleão, tenha convocado uma missão artística francesa no lugar de seus compatriotas portugueses – o crítico Mario Pedrosa defendia que os franceses vieram por conta própria, sem convite. Seja como for, a arte brasileira já existia antes de Debret e Taunay e da fundação da academia.

Da mesma forma, a arte moderna brasileira não nasceu na França nem o concretismo ou a arte experimental dos anos 1960 são frutos da clonagem da arte estrangeira. É o que mostra o livro, que traz um capítulo sobre a arte popular, prova da riqueza e diversidade brasileira.

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