Pintura espartana

Milton da Costa, cujo centenário de nascimento é festejado em 2015, foi um criador singular, com sua enganosa - e genial - simplicidade

por 14/03/2015 00:13
Arquivo EM
Arquivo EM (foto: Arquivo EM)
Carlos Perktold

Apesar da consagração de muitos artistas, a vida de quase todos aqueles nascidos em meados do século 19 até a metade do século 20 foi dura do ponto de vista financeiro. Houve exceções, naturalmente, mas não apenas o sempre lembrado Van Gogh vendeu apenas um quadro durante seus 10 anos de produção imortal. As biografias de Modigliani e de Pollock foram trágicas sob todos os aspectos. Vários pintores e escultores morreram cedo e pobres. Parece haver uma troca divina entre a imortalidade e as dificuldades terrenas, porque é passando pelas vicissitudes da vida e permanecendo no caminho que os deuses os colocaram que esses guerreiros da arte vão superando os obstáculos, os impedimentos, a inveja e os estorvos, seguindo em frente até se transformar, com frequência na velhice, em artistas celebrados. Muitos deles pararam no acostamento dessa vereda e ali ficaram a ver os colegas mais aguerridos passarem com a paleta cheia de cores na mão. Aqueles são bons também, mas os que seguem em frente são imprescindíveis.

Raríssimas pessoas valorizam a pintura como algo capaz de trazer benefícios intelectuais para quem olhe diuturnamente as paredes de seus lares cheias de quadros, desenvolvendo a sensibilidade dos integrantes da casa, ou nem sequer pensam nela como investimento financeiro a longo prazo. Além disso, alguns trabalhos eram caros para um Brasil que vivia naquelas décadas ainda no estado de necessidade e a realização de desejo na arte não fazia parte do cardápio familiar, mesmo dos ricos.

Afirmei, em artigo anterior publicado neste caderno, que é uma ilusão o colecionador ou o grande público, vendo os preços dos trabalhos de Cézanne, Manet, Monet, Pissaro – para citar apenas os franceses – ou de Guignard, Di Cavalcanti, Portinari – para citar os nacionais tão valorizados –, crerem que, se pudessem voltar no tempo, comprariam vários trabalhos deles, garantindo-lhes um futuro tranquilo com a potencial venda das pinturas pelos preços atuais. Engana-se quem pensa assim, ninguém as compraria.

O leitor apaixonado por artes plásticas, em especial pela pintura, sabe desses infortúnios e sabe também que grandes artistas começam suas carreiras pintando paisagens ou figurativos. Alguns saem dessa fase e, com os anos, vão à simplificação representada pelo abstrato, habitualmente parte deste encontrável nos detalhes em fundos das telas dos trabalhos iniciais. Outros acabam voltando para o figurativo, como foi o caso do nosso saudoso Inimá. Muitos jamais abrem mão do figurativo, paisagem, retratos e autorretratos e os seguem até o final da vida. E há, por fim, aqueles que, percorrendo sua trajetória, terminam sempre na mais completa simplificação do que foi iniciado no passado remoto de suas carreiras. Exemplos do primeiro caso, os já citados Portinari, Di Cavalcanti e Guignard, para falar apenas de parte dos gigantes brasileiros. Do segundo grupo falamos de Arcângelo Ianelli, Aldir Mendes, Mabe, Flexor, Fukushima, Wakabayashi e muitos outros.

CENTENÁRIO Mas há ainda aqueles que, ao nosso primeiro olhar, pensamos ser um trabalho de certa escola para em seguida achar que é de outra, e mais um pouco mudar de opinião novamente. Nesse último caso está Milton Rodrigues da Costa (1915-1988), ou Milton da Costa, que assinava DaCosta. Ele faria 100 anos neste 2015 e é, para colecionadores e críticos, um dos mais geniais pintores brasileiros do século 20. Infelizmente, ainda pouco conhecido do grande público. Iniciou sua caminhada muito cedo, começando com paisagens, retratos e autorretratos psicológicos, passou por marinhas, seguiu simplificando figuras humanas cheias de linhas cubistas, formando, ao mesmo tempo, imagens frontal e de perfil, como se a sua bela pintura fosse também um primoroso desenho. Depois, fluiu na mais completa espontaneidade das linhas horizontais e ortogonais, pintando naturezas-mortas que nos intrigam ao primeiro olhar e nos apaixonam ao segundo.

Para chegar a essa espartana e desconcertante simplicidade, que começa em torno do início da década de 1940, adere ao cubismo. Entre 1953 e 1956, nomeava suas obras com a cor que colocaria no fundo do suporte. Assim, em azul, em marrom ou em vermelho designa o fundo da tela, seguido daquelas simples linhas com os volumes cheios de cores, escrevendo poesia com o pincel, definindo objetos e naturezas-mortas que nos encantam pela enganosa simplicidade. Sim, enganosa. Quem as olha pela primeira vez não imagina a trajetória intelectual e pictórica que há atrás de cada composição. Mais adiante, elas nos lembram projetos ou maquetes de encantadoras construções arquitetônicas que, se edificados, fariam seus moradores felizes assim como fazem hoje o espectador delas sorrir com os olhos.

SIAMESES DaCosta e Oscar Niemeyer são irmãos siameses da arquitetura moderna brasileira: um no cavalete e outro na prancheta. Amílcar de Castro é outro irmão, na medida em que ambos terminam fazendo a “mesma” composição: um na tela e outro na chapa de aço, sem que os dois jamais tivessem mencionado entre si o que faziam naqueles anos. Em qualquer das pinturas, construções, retratos, paisagens, Vênus, naturezas-mortas, marinhas de DaCosta há um sempre profundo silêncio, registrando um humanismo que se espera de todo artista executor de pintura universal. Nada nele é regional.

Do casamento com a não menos brilhante pintora Maria Leontina nasceu o único filho, Alexandre. Tão logo seu rebento fica de pé, surge-lhe a fase Alexandrina, na qual o personagem principal e recorrente é o garoto em pé ou apenas a sua cabeça, quadros hoje mal denominados e conhecidos como Cabeçudos. A mesma simplificação ocorrida com suas linhas formadoras de belas imagens é repassada para a nova fase e o filho é imortalizado em pinturas de pequenos e grandes formatos. Aliás, pequenos formatos são a sua preferência na maioria de seus trabalhos, que sempre apresentam leve textura de quem procura o desenho nas cores. Mas o leitor não imagine que ele era melhor nas pequenas superfícies, daí sua preferência. Ele pintava quadros de grande porte – insuperáveis obras-primas.

DaCosta foi premiado com viagem ao estrangeiro em 1944, na Divisão Moderna do Salão Nacional de Belas-Artes. Ficou nos Estados Unidos e em Paris, onde foi amigo de Cícero Dias, que o apresentou a Picasso, Braque e a todos os bravos criadores do cubismo. De lá, Milton voltou mudado. Foi a partir desses contatos tão importantes quanto produtivos que DaCosta compôs seus trabalhos cubistas. Nos anos 1950, com o construtivismo em alta, aderiu a ele e pintou telas, guaches e desenhos com régua e esquadro, demonstrando a mesma preocupação com o equilíbrio dessas composições e com o número de ouro, criando Arte – com letra maiúscula.

Em 1955, ele foi premiado na Bienal de São Paulo, época de sua mais completa maturidade artística. Tinha então 40 anos, sabia de seu talento e que era artista para ficar registrado nos anais brasileiros. DaCosta, hoje, é nome singular na cultura da América portuguesa do século 20. Basta olhar suas criações ou folhear um dos diversos livros editados com suas obras para sabermos: o que é sedimentado na beleza fica no mundo para sempre.

Carlos Perktold é psicanalista e integrante da ))Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA)

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