Heróis de mentira

Livro revela atrocidades e curiosas aventuras de corsários e piratas no litoral brasileiro nos séculos 16 a 18. Saque e violência eram instrumentos do expansionismo mercantil

por 14/03/2015 00:13
National Maritime Museum/reprodução
National Maritime Museum/reprodução (foto: National Maritime Museum/reprodução)
Walter Sebastião

Piratas no Brasil – As incríveis histórias dos ladrões dos mares que pilharam nosso litoral (Globo Livros), de Jean Marcel Carvalho França e Sheila Hue, faz jus a seu título. De um lado estão histórias, realmente incríveis, de saques às vilas litorâneas do Brasil nos séculos 16, 17 e 18. De outro, surgem personagens com jeito de heróis – tratados assim até hoje, especialmente na internet –, mas que acumulam feitos nada exemplares em suas biografias. Da soma dos dois aspectos resulta uma obra que apresenta, com riqueza de detalhes, toda a turbulência dos primórdios da ocupação do território brasileiro, até então um lugar remoto do planeta. Movidos por diversos interesses, digladiavam-se no mar e em terra populações indígenas, portugueses, espanhóis, africanos, franceses e holandeses.

A narrativa põe em cena quatro personagens. Thomas Cavendish (1560-1592) foi um nobre que se tornou temido pirata em toda a América. Sir James Lancaster (1554-1618) pilhou a cidade de Olinda. De Jean-François du Clerc pouco se sabe, exceto que morreu assassinado em 1710, numa prisão brasileira. Ele tentou, mas não conseguiu, atacar o Rio de Janeiro, por onde escoava o ouro a caminho de Lisboa. Já René Duguay-Trouin (1673-1736) participou da empreitada de Le Clerc, incendiou engenhos e fazendas, conseguiu obrigar a cidade a pagar resgate com dinheiro, caixas de açúcar e gado para não ser destruíd

Todos eles eram homens íntimos de cortes reais e elites econômicas que financiaram ou apoiaram essas empreitadas. Investidas comerciais nas Índias Orientais passaram a incorporar saques no Ocidente, à medida que começaram a circular notícias de que naquele Novo Mundo havia riquezas como pau-brasil, açúcar, especiarias e, especialmente, ouro, prata, cobre e pedras preciosas. O saque era prática comum de países em conflito em tempos de expansionismo mercantil. Aristocratas, membros da elite, clero, militares e aventureiros com ambições de fazer fortuna e sonhos de glória cruzaram oceanos para dilapidar armazéns de mercadorias, fazendas, conventos, residências, templos e engenhos em várias regiões do país – São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Espírito Santo, Pernambuco e Paraíba.

Tais atuações são apresentadas ao leitor com relatos de época – e com gosto de aventura. Entram em cena viagens por rotas incertas com embarcações precárias movidas a velas, risco de fome (há brigas de corsários por mandioca, banana, galinhas e porcos), sede, doenças (que várias vezes dizimavam parte considerável da tripulação), além de motins, prisões e mortes. São situações dramáticas, mas com momentos cômicos, como a diferença de tratamento conferido a piratas e corsários em meio a guerras de informação e contrainformação registradas em vários relatos. Nos países de origem, os personagens do livro tendem a ser tratados como heróis que realizaram feitos notáveis. Para os inimigos, ele são, simplesmente, criminosos cruéis, vândalos e hereges.



PESQUISAS Jean Marcel Carvalho França conta que o livro surgiu do encontro de historiadores com experiências acumuladas em décadas de pesquisa sobre viagens e narrativas relativas ao Brasil colonial. “E também, o que não é de pouca importância, da preocupação em dar à história uma qualidade acessível a públicos mais amplos”, conta. A escolha dos personagens veio da intenção de explicar o que representou a atividade corsária em dois momentos distintos da história do Brasil: no século 16, quando o domínio português sobre o território ainda era tênue e incerto, e no século 18, quando a partilha da América entre as nações europeias estava praticamente consolidada.

“Ainda que existam outros piratas e corsários que andaram pela costa brasileira durante ambos os períodos, Cavendish, Lancaster, Du Clerc e Duguay-Trouin pareceram-nos não os mais importantes, mas os mais ilustrativos”, explica o historiador. Piratas e corsários eram o terror das populações das vilas litorâneas por serem capazes de praticar algo habitual depois do saque, contado com naturalidade nos textos que deixaram: queimar vilas inteiras, além de muitas outras atrocidades.

De acordo com o historiador, a propagação das notícias sobre o Novo Mundo e o consequente impacto de tais novidades sobre a cultura, a economia e a sociedade europeias foram lentos. “Até o final do século 16, notícias vindas das terras do Oriente geravam muito mais interesse e tinham muito mais repercussão entre o público europeu. A América passa a ocupar um lugar realmente importante no pensamento do Velho Mundo a partir das últimas décadas dos anos 1500”, explica.

Jean Marcel é professor livre-docente de história do Brasil na Universidade Estadual Paulista (Unesp). O autor tem novos projetos em andamento: contar os detalhes da cultura escrita no Rio de Janeiro colonial, e um livro sobre a história da maconha no Brasil, que sairá pela Editora Três Estrelas. Sheila Hue é doutora em letras pela PUC Rio e tem pós-doutorado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Foi professora da Faculdade de Letras da UFRJ e do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), e também coordenou o Núcleo Manuscritos e Autógrafos do Real Gabinete Português de Leitura. Lançou livros sobre literatura portuguesa e história do Brasil.


Três perguntas para...
Jean Marcel Carvalho França
professor livre-docente de história do Brasil na Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Como piratas e corsários se inserem no contexto da América?
A pirataria dos séculos 16 a 18, a denominada pirataria moderna, nasceu com o descobrimento da América e está relacionada ao questionamento sistemático da partilha dos oceanos e das terras descobertas feita por portugueses e espanhóis. A transição para uma nova partilha, que passou a incluir ingleses, franceses e holandeses, durou pelo menos dois séculos e contou com a decisiva contribuição daqueles que supostamente defendiam a total liberdade dos mares, os piratas. Atraídos pelas notícias da descoberta de grande quantidade de ouro e de prata na América e, sobretudo, pela enorme debilidade das marinhas espanhola e portuguesa, eles proliferaram pelo Atlântico e pelos mares do Sul, da região do Caribe aos portos do Chile e do Equador. Ao longo do período em que atuaram, esses homens receberam designações diversas: piratas, entendidos pura e simplesmente como ladrões do mar, mas também corsários, ladrões do mar que contavam com uma carta de corso, isto é, com uma autorização de seu rei para saquear navios e colônias pertencentes a reinos inimigos ou capturar embarcações piratas – aquelas que navegavam sob a bandeira de nenhuma nação. Por vezes, foram também chamados flibusteiros e bucaneiros, piratas que atuavam contra as possessões e os navios espanhóis nas regiões do Caribe e dos mares do Sul.

Como você vê a boa recepção do público a livros dedicados à história do Brasil?
Em momentos de crise, sobretudo de identidade, como este que estamos vivendo – quando supostos heróis da moralidade se transformam em personagens de crônica policial e todo o ideário de uma geração se mostra um rotundo engodo –, a história sempre prospera, pois temos necessidade de entender se não para onde vamos, ao menos como viemos parar aqui. Creio que, nas últimas décadas, temos demonstrado uma especial predileção pelos séculos 19 e 20, império e república. O período colonial, essencial para compreendermos as bases sobre as quais construímos um povo e um país, tem ficado um pouco de lado, sobretudo o seu aspecto cultural.

Como você vê a popularidade do pirata e da pirataria, tema recorrente de filmes e romances?
Há um lado da pirataria dos séculos 16 a 18, aquele que remete à aventura romântica, para o incerto, para o desconhecido, que desde sempre exerceu um enorme encanto sobre os ocidentais. É esse desbravador e aventureiro, esse pirata romântico, que, recentemente, graças aos filmes de Hollywood, voltou a ser popular entre nós.


PIRATAS NO BRASIL
. As incríveis histórias dos ladrões dos mares que pilharam nosso litoral
• De Jean Marcel Carvalho França e Sheila Hue
• Editora Globo, 224 páginas, R$ 34,90

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