Desconfiança histórica

Clichês e maniqueísmo não ajudam a compreender as conturbadas relações do Irã com os EUA. O filme 118 dias acerta ao escapar do simplismo das produções hollywoodianas

por 14/03/2015 00:13
Diamond Films/divulgação
Diamond Films/divulgação (foto: Diamond Films/divulgação)
Pablo Pires Fernandes

 

“Muita gente busca nos destruir e muita gente não reconhece isso facilmente”, diz o inquisidor iraniano, por vezes torturador, ao jornalista canadense-iraniano Maziar Bahari, em uma prisão de Teerã. É parte de uma cena do filme 118 dias, em cartaz no país. Essa fala é simbólica. Diz muito sobre a visão do Irã em relação ao Ocidente e, sobretudo, ilustra bem o que norteia a conturbada relação entre os Estados Unidos e a nação persa: desconfiança.

Os EUA como o “Grande Satã” é algo corrente na retórica dos líderes iranianos desde a Revolução Islâmica de 1979. Em Washington, os sucessivos governos – e a mídia que insufla a visão oficial – demonizam os “radicais xiitas”, pois são “patrocinadores do terrorismo” e integrantes do “eixo do mal”. EUA e Irã criaram – e ainda sustentam – a imagem demoníaca um do outro. Essa imagem e suas consequências políticas, claro, têm fundamento histórico.

O filme dirigido por John Stewart nem é uma grande obra, longe disso. Porém, serve bem ao propósito de pensar as relações entre as duas nações. Muitas das críticas se ativeram ao fato de ser o longa de estreia de Stewart, apresentador do programa de TV The daily show, que mistura sátira política e de costumes de maneira indiscriminada. O filme tem traços dessa mescla e alguns momentos de comédia destoam do tema central, que é bastante sério. Apesar do ritmo irregular e alguns exageros, 118 dias tem o mérito de retratar os fatos de maneira bastante correta e escapar do maniqueísmo simplista da maioria das produções hollywoodianas que têm o Irã como tema. A história, baseada no livro de Bahari, narra sua prisão quando trabalhava como correspondente da revista Newsweek, em 2009, quando cobria as polêmicas eleições presidenciais e os protestos que as sucederam.

A visão ocidental de desconfiança em relação à república islâmica e as críticas às supostas fraudes do pleito de 2009, quando o presidente conservador Mahmud Ahmadinejad foi reeleito, são notórias e foram expostas pela mídia daqui. O que o filme não explora – e nem é o caso – são as origens e os porquês de as relações entre o Irã e os Estados Unidos terem se tornado tão antagônicas para criar tamanha desconfiança mútua.

A hostilidade entre os dois países, evidente nos noticiários e nos filmes de Hollywood, não é fato novo. O início dessa contenda data de 1953, quando o primeiro-ministro iraniano Mohammed Mossadeq, eleito democraticamente, sofreu um golpe de Estado patrocinado pelos serviços de inteligência da Grã-Bretanha (MI6) e dos EUA (CIA). O xá (rei, em persa) Mohammad Reza Pahlevi, exilado, retornou ao país e assumiu o poder com apoio americano. A política pró-Ocidente e a repressão à oposição – grupos islâmicos e esquerdistas – fomentou protestos que culminaram na Revolução Islâmica de 1979, quando foi estabelecida a República Islâmica do Irã sob o comando do aiatolá Ruhollah Khomeini. O xá se exilou nos EUA para tratar um câncer.

Os iranianos exigiam que Reza Pahlevi fosse deportado para ser julgado em seu país, e a recusa dos EUA de extraditá-lo provocou grandes protestos. Em 4 de novembro de 1979, um grupo de estudantes tomou a Embaixada dos EUA em Teerã, fazendo 52 americanos reféns. A crise durou 444 dias e foi determinante para o aprofundamento da rivalidade entre os dois países.

Na década de 1980, uma velha disputa territorial com o vizinho Iraque desencadeou um conflito que durou oito anos. A Guerra Irã-Iraque (1980-1988) deixou estimados 1 milhão de mortos do lado iraniano e 500 mil iraquianos. O apoio americano (e de vários países, incluindo o Brasil) ao ditador Saddam Hussein contribuiu para radicalizar o ódio antiamericano.

Em julho de 1988, o ataque ao voo 655 da Iran Air ajudou a encerrar o conflito. Depois de invadir águas territoriais iranianas, o navio de guerra americano USS Vincennes disparou contra o Airbus A-300, matando os 290 civis a bordo, incluindo 66 crianças.

O episódio, chamado pelo Irã de “atrocidade” e “massacre”, foi tratado pelos EUA como acidente e nunca houve um pedido de desculpas. Menos de um ano depois, o aiatolá Khomeini morreu e o presidente Ali Khamenei assumiu o posto de líder supremo.

PROGRAMA NUCLEAR Outra fonte de querelas entre o regime islâmico e o Ocidente é a questão nuclear. O desenvolvimento de um programa nuclear no país, poucos sabem, teve início ainda na década de 1950, incentivado pelos EUA, França, Alemanha e Reino Unido. Em 1968, firmou-se o Tratado de Não Proliferação (TNP), que permite a seus signatários o uso de energia atômica para fins civis sob inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), da Organização das Nações Unidas (ONU). A mesma tecnologia, porém, se aprimorada, serve para se obterem armas nucleares.

O impasse atual teve início em 2002, quando os EUA acusaram o Irã de desenvolver armas atômicas. Teerã chegou a propor negociações, recusadas pelo então presidente George W. Bush. No ano seguinte, a AIEA reportou que o Irã não estava cumprindo seus compromissos de salvaguarda perante a agência. A disputa fez com que o Conselho de Segurança da ONU adotasse, em 2006, uma resolução exigindo a suspensão do enriquecimento de urânio, mas o Irã acelerou o processo, argumentando seu direito à energia atômica para fins pacíficos.

Três pacotes de sanções afetaram a economia iraniana sem, no entanto, interromper a atividade nuclear do país. Depois de períodos de líderes mais progressistas na Presidência, a eleição do prefeito de Teerã, Mahmud Ahmadinejad, para o posto em 2005 deixou o Ocidente em alerta. Extremamente conservador e com agressiva retórica anti-Israel e antiamericana, a tensão entre a república xiita e as potências ocidentais deu um salto.

Depois de invadir o Afeganistão e o Iraque, dois vizinhos do Irã, o governo de Teerã via com desconfiança a implantação de dezenas de bases militares dos EUA na região. Os líderes iranianos também se ressentiam sobre o programa nuclear de Israel, que nunca assinou o TNP nem assumiu sua existência e jamais foi alvo de qualquer tipo de sanção.

IMPASSE O embate entre a república islâmica e o Ocidente permanece. O impasse sobre o programa nuclear ainda divide opiniões. Desde a denúncia da AIEA de 2003, o Irã e as potências trocam acusações, ameaças e pressões. Sucedem-se idas e vindas de inspetores da agência da ONU, relatórios mostram avanços e recuos das autoridades de Teerã. Israel e os EUA chegaram à beira de um ataque militar contra as instalações nucleares iranianas. A hipótese ainda não foi descartada, mas com a vitória do moderado Hassan Rohani, em 2013, a disposição para o diálogo ganhou mais força.

Atualmente, vigora um acordo preliminar entre o Irã e o grupo P5+1 (China, Rússia, EUA, Reino Unido e França e a Alemanha), que estabelece uma série de obrigações de Teerã em relação a seu programa nuclear. Até agora, as negociações nunca estiveram tão próximas de ser bem-sucedidas, a despeito da campanha israelense para minar um acordo definitivo, de exigências exageradas por parte dos EUA e da eterna – e justificada – desconfiança dos iranianos em relação ao Ocidente, além de suas disputas internas. Em 30 de junho expira o prazo para que um acordo definitivo seja selado. Acompanhemos, pois, os próximos capítulos.

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