Singular e atemporal

O arquiteto Alfredo Campos Matos mergulha fundo em aspectos não explorados da vida e da obra de Eça de Queiroz e produz uma das mais completas biografias do escritor português

por 14/03/2015 00:13
Fotobiografia/reprodução
Fotobiografia/reprodução (foto: Fotobiografia/reprodução)
Severino Francisco


Eça de Queiroz já foi tema de estudos elaborados por intelectuais de primeira linha, da categoria de Álvaro Lins ou João Gaspar Simões. No entanto, nem tudo havia sido pesquisado ou deslindado na sua trajetória. O arquiteto português Alfredo Campos Matos revisitou a vida e a obra do escritor e escreveu a mais completa biografia do autor de Os Maias. O catarpácio de quase 600 páginas pode meter medo à primeira vista. Mas essa impressão se dissipa logo nas primeiras páginas em razão da prosa elegante, agradável, límpida e fluente.

Em Portugal, o livro ganhou o Grande Prêmio da Literatura Biográfica, concedido pela Associação Portuguesa de Escritores, e o Prêmio Jacinto do Prado Coelho, da Associação Portuguesa de Críticos. Alfredo publicou Imagens do Portugal queiroziano (1976) e O dicionário de Eça de Queiroz (1988). Em seu novo trabalho, ele reconstrói fios delicados da trajetória do genial português: o não reconhecimento pleno da filiação pelos pais, a repercussão da polêmica desencadeada por Machado de Assis, a conexão pelo humor, a devoção religiosa e o estilo, a um só tempo, sinuoso, insinuante, preciso, fluído e impregnado de cor. Leia a seguir as ideias de Alfredo Campos Matos sobre Eça.


• FILHO ILEGÍTIMO

A ilegitimidade de Eça teve em sua obra a maior das repercussões pelo fato de tal complexo ter abalado enormemente a sua personalidade. Desenvolvo esse tema, ao que suponho, de forma completa. Ele tem sido abundantemente estudado, nem sempre racionalmente e à luz de todos os documentos de que dispomos. Eça sofreu sempre com essa circunstância, muito particularmente por ter sido educado sem mãe, abandonado desde a nascença. Esse foi, para mim, o seu maior trauma. Quando foi viver com os pais, já adulto, em Lisboa, logo depois da formatura em Coimbra, fê-lo pela primeira vez. Pela primeira vez soube o que era ter um lar. A mãe tinha um feitio muito especial e ainda hoje se especula sobre as razões que a teriam levado a abandonar o filho. O pai foi conivente com essa situação, a que decerto não pôde acudir, redimindo-se depois ao subsidiar o seu primeiro romance. Sua obra se ressente desse fato, pois não há casais felizes nela, com a exceção de Alves & Cia e de A cidade e as serras. Por outro lado, para superar a sua inferioridade social, Eça procurou afirmar-se e superar tal condição tirando partido da sua vocação e desse “dom dos deuses” que é a escrita. Quando, por sua vez, teve um lar, esmerou-se em atenções com a família e com os filhos, como se imaginasse o papel da harmonia e do amor no desenvolvimento psicológico das crianças. Enfim, poderemos concluir: como alguém disse, não há nada melhor do que uma infância infeliz para enriquecer a personalidade de um criador. A de Eça era bastante complexa e densa. Tal fato teve reflexos profundos bem palpáveis na sua escrita.


EÇA E O BRASIL

As relações do escritor com o Brasil foram múltiplas e são deveras importantes, muito particularmente com Machado de Assis, que fez uma crítica predominantemente moral ao naturalismo realista. Em todo caso, Eça lucrou com essa crítica, que o ajudou a libertar-se das cadeias de escola literária que poderiam ter prejudicado a sua liberdade de imaginação e fantasia. Mas o grande Machado não lucrou menos, pois os dois grandes romances realistas do seu confrade provocaram em si um tal abalo que o fizeram mudar de singradura. Tal como Eça, era todavia um dissimulado, escondendo as suas reações e opções. Ambos guardaram o melhor para si. Ao longo da sua vida – sem esquecer as ligações biográficas com o Brasil, pois o pai era brasileiro –, Eça teve inúmeros contatos com brasileiros e com representantes superiores da sua cultura, tendo convivido intensamente em Paris com um grupo de notáveis, de que destacamos Domício da Gama e Eduardo Prado, um de seus mais íntimos amigos. A crítica de Machado à sua obra foi sobretudo de caráter moralista, e bastante mal recebida no Brasil, até pelo excelente crítico Álvaro Lins. Foi injusta e muito parcial, embora tivesse razão quanto a considerar os prejuízos que uma escola literária pode eventualmente fazer a um grande autor tão imaginativo e fantasista como Eça. Ele reconheceu esse inconveniente, mas salientou, ao mesmo tempo, que tal disciplina ajudou a controlar a sua fantasia.


O JORNALISTA

Podemos dizer: foi por meio de sua atividade como jornalista e autor de folhetins fantasistas que produziu os primeiros textos que o lançaram como escritor e admirável cronista. Mais tarde, a colaboração importantíssima que deu à Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro, confirmou a sua categoria. Como se sabe, depois do curso em Coimbra, produziu só, durante meses, um jornal em Évora, o Distrito de Évora.


EÇA E O LEITOR BRASILEIRO

Há em Eça afinidades profundas com o temperamento brasileiro, desde logo por meio da admirável simplicidade da sua prosa, da sua ironia e, sobretudo, do seu humor. Depois, temos que confessar que os brasileiros complexados pela colonização portuguesa sentem um secreto prazer com a leitura de descabeladas tundas que Eça dá a Portugal e aos portugueses, pelo desejo de ver a sua pátria mais progressiva, mais justa e mais a par dos países mais adiantados da Europa.


OBRAS-PRIMAS

A obra literária de Eça é muito variada e demonstra uma singularidade muito sinuosa, que é a de um escritor rebelde, que nunca se sujeitou a disciplinas de escola. Essa singradura que passou por diversas fases desorientou os comentadores e ainda hoje não está inteiramente compreendida. Prova-o à saciedade o que se tem dito de uma obra-prima: A relíquia. Eça começou por textos de uma descabelada fantasia, tornou-se realista depois da viagem ao Oriente, escreveu depois dois romances magistrais dentro dos princípios do realismo, fez em seguida uma viragem fantasista com O mandarim e A relíquia para retomar logo em seguida os princípios da observação objetiva e experimental com Os Maias, entrando na maturidade da última fase com A cidade e as serras, A correspondência de Fradique Mendes e A ilustre casa de Ramires. Não vejo que qualquer dos gêneros literários que praticou tenha envelhecido. Harold Bloom, o grande crítico norte-americano, disse que A relíquia tinha hoje a mesma frescura e atualidade com que apareceu em 1878. Os Maias é um clássico intemporal, continua a ser a sua obra mais citada.


MESTRE DA LÍNGUA

Eça está à altura de Fernando Pessoa e de Camões. É um mestre inigualável da língua, com mensagem clara, objetiva, extremamente atual, de crítica social e política. Nesse sentido, continua a ser o autor português mais citado. Peças como Alves & Cia (que ganhou a adaptação para o cinema assinada pelo diretor mineiro Helvécio Ratton, com Patrícia Pillar, Alexandre Borges e Marco Nanini no elenco), o conto “José Matias” e A cidade e as serras são valores intemporais que se leem e releem com inusitado prazer.


EÇA DE QUEIROZ UMA BIOGRAFIA

De Alfredo Campos Matos
Ateliê Editorial/Unicamp
581 páginas, R$ 110

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