A referência secreta

Livro resgata a obra de Joseph Gire, que ajudou a mudar a paisagem urbana carioca no início do século 20. As ideias do francês dialogaram com fundamentos da arquitetura modernista

por 28/02/2015 00:13
Antônio Rudge/O Cruzeiro/EM
Antônio Rudge/O Cruzeiro/EM (foto: Antônio Rudge/O Cruzeiro/EM)
Ângela Faria


Apesar de pouco lembrado pelos brasileiros, o arquiteto Joseph Gire (1872-1933) deixou a sua assinatura na paisagem brasileira. Da prancheta desse francês saíram os projetos do Copacabana Palace, do Hotel Glória e do Edifício A Noite (atualmente batizado com seu nome), marcos do Rio de Janeiro. O trio, ainda hoje, parece saudar quem chega à antiga capital do país pelo mar. São, por assim dizer, “embaixadores” da carioquice – ou da brasilidade.

Gire fez história: o prédio construído para abrigar o jornal A Noite, inaugurado em 1929, foi por algum tempo o maior arranha-céu da América do Sul, com seus imponentes 125 metros de altura – marco das construções em concreto armado. Localizado na região da Praça Mauá, ele abrigou posteriormente a Rádio Nacional e foi um pioneiro do processo de verticalização do Rio de Janeiro.

Outra obra do francês, criada em parceria com o brasileiro Armando da Silva Telles, marcou a história do país: o Palácio Laranjeiras, atual sede do governo fluminense. Foi lá que o presidente mineiro Juscelino Kubitschek morou depois de recusar o “trágico” Palácio do Catete, onde Getúlio Vargas se suicidara em 1954. O legado do arquiteto é resgatado por Jean-Louis Cohen e Roberto Cabot em J. Gire – A construção do Rio de Janeiro moderno (Leya/Casa da Palavra). O livro chega oportunamente às livrarias durante a festa dos 450 anos da Cidade Maravilhosa, que serão comemorados amanhã.

Bisneto de Gire, o artista plástico Roberto Cabot estudou arquitetura na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e na Escola Superior Paris-Malaquais. Para ele, o criador do Copacabana Palace expressou de maneira singular o desenvolvimento de conceitos arquitetônicos do início do século 20, prenunciando, à sua maneira, ideias modernistas que revolucionariam o país.

Para Cabot, o conjunto das obras de Gire mostra “que é progressivamente – e não numa explosão catártica, como gostam de nos contar certos livros de história – que se impõe a estética moderna. Ela não saiu das pranchetas iluminadas dos heróis do modernismo, mas foi resultado da dinâmica coletiva, com passos graduais dados em função das circunstâncias”. O autor revela ter ouvido de Oscar Niemeyer elogios às plantas de seu bisavô, “com seus inteligentes esquemas de circulação e excelente racionalização do espaço – coincidentemente, o mesmo comentário feito pelo grande arquiteto contemporâneo Christian de Portzamparc quando o questionei sobre o Copacabana Palace”.

Cabot confidencia: o fato de ser bisneto do idealizador do Copa era quase constrangedor para ele, jovem estudante da Faculdade de Arquitetura da UFRJ, diante do pouco caso de seus mentores acadêmicos em relação ao legado de Gire. “O curso de história da FAU praticamente começava com o Palácio Capanema, de 1937”, diz, referindo-se ao prédio do Ministério da Educação, no Centro do Rio de Janeiro. Esse marco da arquitetura moderna brasileira foi projetado por Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Carlos Leão, Affonso Eduardo Reidy, Ernane Vasconcellos e Jorge Machado Moreira, com a consultoria de Le Corbusier.

MONUMENTALIDADE Historiador da arquitetura e urbanismo, Jean-Louis Cohen, ex-professor da Universidade Paris VIII e integrante do corpo docente da Universidade de Nova York, destaca o papel de Gire na constituição da monumentalidade dos centros urbanos. “O Hotel Glória é um autêntico marco urbano por sua localização, na Praia do Flamengo, onde as construções ainda eram raras, muito baixas e, sobretudo, mais próximas das margens da baía, que ainda não havia sido aterrada. Ele dominava os arredores com seus 12 andares e se tornou uma referência monumental”, observa o pesquisador. O imponente prédio virado para o mar, construído para a Exposição Internacional de 1922, parecia emitir um sinal para o mundo, compara.

Da mesma forma, o Copacabana Palace, inaugurado em 1923, representou um marco da urbanização das praias cariocas. “Suas instalações foram a principal justificativa para o deslocamento da vida social do Rio de Janeiro para uma praia ainda periférica”, afirma Jean-Louis Cohen. Outro marco de Gire na paisagem carioca: a reforma do Palace Hotel, na Avenida Rio Branco. A antiga construção ganhou um novo conceito. O francês fez a sobre-elevação “sem arriscar, usando apenas seu savoir-faire sobre a disposição de espaços interiores e seu grande conhecimento sobre o concreto armado”, explica. Na contramão das ideias dos colegas, Gire previu a verticalização da capital do Brasil.

Naqueles anos, projetos monumentais de grandes hotéis foram pioneiros. Não se tratava de mero abrigo para hóspedes, “mas de laboratórios para a introdução de novos equipamentos domésticos – dos elevadores aos banheiros internos, do telefone ao ar-condicionado”, informa Cohen.

O professor francês destaca a íntima ligação de Joseph Gire com a internacionalização da economia brasileira nos anos 1920. Em parceria com o escocês Robert Russell Prentice, o arquiteto projetou os escritórios da seguradora Sul América, inaugurados em 1922. O imóvel dominava as lojas coloniais da área no Centro do Rio de Janeiro. Cohen compara o impacto provocado pela sede do Edifício A Noite nos passageiros que chegavam de navio à cidade àquele causado pelos arranha-céus de Manhattan, em Nova York.

“Apesar de apenas alguns anos separarem os palácios de Gire das primeiras construções de Lúcio Costa, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy ou dos irmãos Roberto, os primeiros desempenhariam para elas o papel de pano de fundo, distante historicamente – como a Paris de Haussman foi o pano de fundo para os imóveis de Auguste Perret, Le Corbusier e Robert Mallet-Stevens. No entanto, a clareza e a racionalidade da distribuição dos espaços, além da noção de economia de Gire, não contradizem os valores que seriam seguidos pelos modernos radicais brasileiros, para quem o arquiteto seria sempre uma referência secreta”, afirma o professor Jean-Louis Cohen.

TRAJETÓRIA
Aluno da École Nationale et Spéciale des Beaux-Arts, em Paris, Joseph Gire trabalhou com os irmãos Lucien e Henri Grandpierre, que comandavam importante escritório. O modelo arquitetônico francês professado por ele inspirava o mundo naquele início de século 20. Potência econômica, a Argentina atraiu o jovem profissional de 36 anos, que se mudou para Buenos Aires em 1908 e desenvolveu vários projetos importantes na capital portenha. Em 1916, Gire fundou seu escritório carioca, depois de assinar uma obra emblemática para a cidade: o Palácio das Laranjeiras, erguido para ser a residência da família Guinle. Em 1947, esse imóvel foi comprado pelo governo federal.

Gire passou a morar entre Paris e o Rio de Janeiro com a mulher e as filhas. Um de seus netos é carioca, nascido em 1929. Doente, o arquiteto fixou-se na Europa e voltou ao Brasil poucas vezes. Morreu em 1933, no País Basco francês.

Defensor dos arranha-céus, Gire não era partidário do bota-abaixo indiscriminado. Comprou briga com o aclamado urbanista francês Alfred Agache, convidado para trabalhar no projeto Rio maior, iniciativa do prefeito Prado Júnior para remodelar a capital. Gire vencera o concurso para reformar o Teatro João Caetano, na Praça Tiradentes. Pretendia modernizá-lo, mas mantendo a estrutura original. Agache anulou o resultado e viabilizou a proposta de seu protegido Agustino Baldassini, que demoliu o imóvel.

A “referência secreta” de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa deixou profunda impressão em um ícone das letras, o austríaco Stefan Zweig. Em 1936, o escritor visitou a residência projetada por Gire para o clã Guinle na Ilha de Brocoió, na Baía de Guanabara. Aquele “paraíso encantador” mereceu as seguintes palavras do autor de Brasil, país do futuro: “A lancha-automóvel põe-se em marcha, em meia hora o indivíduo está de novo na cidade e em pleno burburinho. E, quando o contorno dessa ilha com as altas palmeiras vai desaparecendo nas ondas, já pergunto a mim mesmo se realimente vi tal coisa ou se apenas sonhei com ela. Novamente bebo (e quantas vezes já o fiz nesta cidade!) uma gota da profusão do prazer deste mundo!”

J. GIRE – A CONSTRUÇÃO DO RIO DE JANEIRO MODERNO
• De Jean-Louis Cohen, Roberto Cabot e Jean Gire
• Casa da Palavra
• 192 páginas, R$ 130

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