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Virginia Woolf se revela sensível ensaísta em O sol e o peixe, com reflexões pertinentes sobre a escrita. Em O valor do riso, ela fala sobre a importância da música em sua obra

por 21/02/2015 00:13
Gisele Freund/National Portrait Gallery/ Reuters
Gisele Freund/National Portrait Gallery/ Reuters (foto: Gisele Freund/National Portrait Gallery/ Reuters)
André de Leones e João Marcos Coelho



Os nove ensaios de Virginia Woolf (1882-1941) reunidos em O sol e o peixe são uma boa amostra de uma obra ensaística que, a despeito de a autora ser mais conhecida por romances como Mrs. Dalloway e Ao farol, e conforme nos informa o organizador e tradutor Tomaz Tadeu, soma mais de três mil páginas. Por sua vez, os textos constantes do volume trazem características que os afastam dos temas habituais da prosa de não ficção de Woolf, mais voltada às resenhas e análises literárias, constituindo reflexões de forte carga lírica – o que explica o subtítulo Prosas poéticas. Os ensaios são inteligentemente divididos em três blocos: A vida e a arte, A rua e a casa e O Olho e a mente – cada bloco comporta três textos.

Em Montaigne (1924), que abre o livro, a autora discorre sobre o pensador francês, ao mesmo tempo em que permite que o estilo e as inquirições levadas a cabo por ele animem e deem sentido ao que ela própria escreve. Temos, com isso, uma bela digressão sobre a forma do ensaio e como esta pode (ou não) refletir quem faz uso dela: “Pois, para além da dificuldade de comunicar aquilo que se é, há a suprema dificuldade de ser aquilo que se é”.

No ensaio seguinte, Memórias de uma filha (1932), ela retrata seu pai, o historiador, jornalista e (sim) alpinista Leslie Stephen. Mais do que acumular caracteres e idiossincrasias, ela se esforça para distinguir, como se o fizesse com traços de giz, em meio à densa neblina da memória, a figura de um homem descrito por outrem como “um cavalheiro que veste boas roupas sem sabê-lo”. E, lendo essas páginas, torna-se fácil pensar em Woolf como uma dama vestida com bons sentimentos sem explicitá-lo, pois a afetuosidade navega tranquila, linha após linha, entrelinha após entrelinha, sem jamais impor sua presença com estardalhaço.

Por fim, se Montaigne pode (também) ser lido como uma reflexão sobre a escrita, A paixão da leitura (1931) nos lembra das nossas obrigações como leitores. Há um pedido de cumplicidade para que nos coloquemos, ao menos a princípio, com o livro, e não contra ele. Na segunda parte, a autora se lança para fora de si e de casa. Flanando por Londres (1927), outro grande momento, é uma correnteza narrativa que se coaduna com o fluxo (de pessoas e, portanto, de histórias) da grande cidade. Tem-se, ali, o germe da criação ficcional, posto que “de uma frase ao acaso fabricamos toda uma vida”, construindo a ilusão de que “podemos assumir, brevemente, por alguns minutos, o corpo e a mente de outra pessoa”. Tal esforço, agora voltado para (e contra) as muitas vozes interiores, tem prosseguimento em Anoitecer sobre Sussex (1942).

Sobre estar doente (1926) trafega em nível da carnalidade pelas ocasiões em que a doença enseja um novo modo de ver e ser visto, e também a oportunidade de, enquanto leitores, continuarmos conectados a algo que nos é extrínseco. Na derradeira parte do volume, Woolf fala com os olhos, por assim dizer, refletindo sobre a pintura (1925) e suas relações possíveis e impossíveis com a escrita literária, o cinema (1926) – quando, muito acertadamente, ela prevê que a sétima arte só se firmaria enquanto tal ao desenvolver uma gramática própria, descolada do discurso literário – e, por fim, no ensaio-título (1928), sobre o olhar e a memória – “um cenário só sobrevive na estranha poça em que depositamos nossas memórias se tiver a boa sorte de se juntar a alguma outra emoção pela qual ela é preservada”. O encerramento perfeito para um conjunto de textos que parte do olhar e retorna a ele, estabelecendo um trajeto que alude ao próprio esforço ensaístico e literário.

A MÚSICA

São 31 textos curtos. A maior parte de crítica literária. Algumas minibiografias a propósito de efemérides de figuras reais, várias femininas, protótipos de sua obra-prima Orlando. Crônicas irresistíveis, sobre uma mariposa ou a crítica, e até um hilário tratado sobre o riso. Versátil, Virginia Woolf ganhou seu pão diário escrevendo para a imprensa inglesa. O valor do riso é o maravilhoso ateliê no qual experimenta as mais variadas receitas de escrita. E, o melhor para os musicomaníacos, deixa escapar que a música é um dos principais vetores de sua criação artística, ao contrário de seus parceiros de Bloomsbury, mais afeitos às artes visuais. Em 1901, aos 19 anos, afirma que a única coisa que vale a pena neste mundo “é música – música e livros, e um ou dois quadros”. Aos 58 anos, confessa: “Penso sempre em meus livros como música antes de escrevê-los”.

Ela adorava Mozart, Beethoven e Schubert. Fez do ritmo o núcleo gerador de sua arte, na expressão do crítico de arte e pintor Roger Fry, amigo dileto e figura-chave de Bloomsbury. Ou, como aponta o tradutor Leonardo Fróes em seu excelente texto introdutório, “o uso exaustivo do ponto e vírgula; a repetição ocasional de palavras ou frases; perguntas frequentes ao leitor ou à própria reflexão de quem escreve; e o meticuloso emprego de travessões enfáticos são alguns traços marcantes” de sua prosa. Em 1921, compara-se a “um improvisador com suas mãos passeando pelo piano”, o que remete ao ensaio inicial de O valor do riso: Músicos de rua é mais do que um flanar despretensioso pelos sons das bandinhas e músicos de rua londrinos nos idos de 1905. Mostra como a música é essencial, vital para o ser humano. Foi seu primeiro artigo na imprensa. Qualifica como divina a chama de um velho tocando violino na rua e anota o preconceito empolado do pessoal do andar de cima contra esta arte livre e perigosa.

A jovem ousada de 23 anos termina sugerindo que se as melodias de Beethoven, Brahms e Mozart fossem doadas aos pobres pelos ricos e ouvidas nas esquinas, “é provável que todos os crimes e contendas logo se tornassem desconhecidos, podendo fluir melodiosos, em obediência às leis da música, o trabalho das mãos e os pensamentos da mente”. Assim, “do nascer ao pôr do sol nossa vida poderia passar ao som de música”.



O SOL E O PEIXE
. De Virginia Woolf
. Autêntica
. 112 páginas, R$ 37,90



O VALOR DO RISO
. De Virginia Woolf
. Cosac Naify
. 512 páginas, R$ 52

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