Raízes do BRASIL

O historiador Marcos Costa afirma que o golpe militar de 1889 impediu o país de avançar. socialmente. A República abortou o projeto de modernidade articulado pela princesa Isabel

por 21/02/2015 00:13
Marc Ferrez/O Brasil de Marc Ferrez
Marc Ferrez/O Brasil de Marc Ferrez (foto: Marc Ferrez/O Brasil de Marc Ferrez)
Ângela Faria



Para compreender os impasses do Brasil contemporâneo, é preciso observar atentamente os fatos históricos que marcaram o país no século 19. Convicto disso, Marcos Costa acaba de lançar o livro O reino que não era deste mundo (Editora Valentina), que ganhou um subtítulo provocador: Crônica de uma república não proclamada. Regências, Segundo Reinado e abolição da escravatura têm muito a ver com as manchetes dos jornais destes anos 2000. Doutor em história social pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), o autor se propõe a guiar o leitor por um século fascinante.

Costa avisa: a República recém-proclamada, vista até hoje como redenção ao “atraso” do Brasil colonial, vai de encontro ao quadro epopeico pintado por Benedito Calixto em 1893. “A proclamação não passou de um golpe militar que ocorreu porque a elite escravocrata se revoltou contra a atitude do governo de acabar com a escravidão. Provavelmente, se estivesse prevista na lei uma indenização aos escravocratas, certamente a proclamação não teria ocorrido, pelo menos naquele momento”, garante ele. Marcos lembra que a abolição deu prejuízo econômico e político a quem fez fortuna às custas das senzalas. “O golpe militar de 1889 foi uma tentativa de assegurar essa importância política”, adverte.

A rigor, a quartelada verde-amarela passou longe da Revolução Francesa, que mudou o mundo a partir de 1792. “O que houve foi um evento, um golpe militar, que em 15 de novembro de 1889 destituiu o primeiro-ministro. Era este o objetivo do marechal Deodoro da Fonseca. Monarquista, ele jamais faria nada contra o imperador”, observa o pesquisador, enfatizando que o responsável pela decisão do militar foi o republicanista Benjamin Constant. “Ele envenenou Deodoro, dizendo que dom Pedro II nomearia Silveira Martins, um desafeto do marechal, para o ministério”. Tal intriga, aliada ao ressentimento dos escravocratas, levou à proclamação.

“O golpe militar foi conservador. A princesa Isabel tinha um projeto muito mais avançado para o país. Não por acaso, com a federalização, o estado de São Paulo, berço do republicanismo, continuou mantendo políticas protecionistas em relação ao café, socializando o custo das perdas sazonais de modo a não penalizar os produtores. No Brasil, como sempre, quem paga a aventura dos grandes empresários é o povo”, afirma o historiador.

O livro de Costa chama a atenção para a aguda percepção de dom Pedro II em relação ao futuro do Brasil num contexto mundial marcado por amplas mudanças socioeconômicas. “Ele assumiu a monarquia ainda muito jovem, nos anos 1840, com o golpe da maioridade. Aos 15 anos, teve que enfrentar a pressão da Inglaterra pelo fim da escravidão – não por altruísmo, mas porque o império precisava de mercado consumidor para seus produtos industrializados. No fundo, dom Pedro sabia: mais cedo ou mais tarde, o Brasil teria que resolver a questão da escravidão e abrir as portas para a modernidade”, diz o autor de Crônica de uma república não proclamada....

Consciente de que transformações estruturais feririam os interesses dos donos do poder, o imperador articulou para que elas ocorressem na passagem do Segundo para o Terceiro Reinado, comandado pela princesa Isabel. “A partir de 1850, aos poucos, quase naturalmente, o comércio, a indústria e a passagem do mundo rural para o mundo urbano foi ocorrendo de forma irreversível. O Terceiro Reinado só seria viável se conectado com a nova elite urbana, liberal e arrivista em detrimento da outra elite, ruralista, escravocrata e patriarcalista”, analisa Marcos Costa.

Velho e doente, dom Pedro II talvez não pusesse fim à escravidão com uma canetada, como fez a filha. A princesa fez uma aposta – afrontando a velha elite – e perdeu. Para o pesquisador, Isabel e o marido, conde D’Eu, até resistiriam ao golpe de Deodoro. “Mas o imperador, cansado, simplesmente desistiu”.

MULHER

Marcos Costa destaca a relevância histórica da princesa Isabel. Influenciada pelo pai e o marido na juventude, ela mostrou ter personalidade própria a partir de sua primeira regência, em 1871. “Isabel enfrentou com muita coragem políticos experimentados, afrontou toda uma elite de fazendeiros escravocratas. A abolição, sem dúvida, era a sua principal bandeira. Ela sabia que todo o resto dependia deste primeiro ato: o fim da escravidão”, acredita Costa. A filha de dom Pedro II queria incentivar a imigração, o comércio, a diversificação da economia e a passagem do modelo primário exportador para o industrial.

Resumindo: a herdeira do trono era sensível ao pensamento liberal. “Ela pertencia a uma nova geração, conectou-se desde o primeiro momento com esse projeto de país. Foi a primeira senadora, a primeira mulher a presidir o Brasil por meio das regências. Se hoje a situação da mulher é complicada, imaginemos no século 19. Apesar do enorme preconceito, ela enfrentou tudo com muita coragem, segura do que queria. Isabel tinha um projeto de país e lutou por ele até o fim”, garante Marcos Costa.

Isabel deixou um legado para a contemporaneidade, defende o autor: “É preciso enfrentar o comodismo social e os interesses de classe para implementar mudanças”. Personagem ímpar, a princesa daria uma ótima minissérie, concorda ele. “As séries de TV e filmes que fizemos até hoje sobre a monarquia retrataram uma realidade um pouco obscura. Nós nos interessamos mais por aspectos da vida privada do que pela vida pública das pessoas. Algo que tratasse a princesa como estadista e trabalhasse o drama que ela viveu naqueles anos finais da monarquia, certamente, revelaria muito da história do Brasil”, acredita ele.

CONDE

Outra figura importante – e pouco lembrada – é o conde D’Eu, marido de Isabel. “Nascido na França, ele tinha todo um pensamento liberal que ajudou a mulher a formar sua visão do mundo, visão essa complementada pelas viagens que ela fez para visitar a família do marido na Europa”, lembra o historiador. Marcos destaca a postura do francês na Guerra do Paraguai, como substituto do Duque de Caxias no comando das Forças Armadas. “No final do conflito, ele impôs como condição para devolver o território ocupado ao povo paraguaio que a escravidão fosse abolida no país. Tinha casas de aluguel e cortiços no Rio de Janeiro, era homem com uma outra mentalidade. Sofreu preconceito por ser estrangeiro. Sem dúvida, é ele quem está por trás do pensamento liberal da princesa Isabel.”

O reino que não era deste mundo deixa claro: o Brasil ainda “paga a conta” dessa república “não proclamada” nos anos 1800. “Fomos o último país a acabar com a escravidão. Mesmo depois de abolida, a situação do povo escravizado foi de penúria total: sem direitos sociais, abandonado à própria sorte. O preconceito racial vem daí, da extensão da escravidão além do limite do século 19. Se não fosse o ato suicida da princesa Isabel, até quando isso iria? Adentraríamos o século 20 com escravos? É possível”, afirma Marcos Costa.

Aliás, a discriminação racial não é o único preconceito nacional. “Há também o preconceito contra o trabalho. Trabalhar sempre foi coisa de escravo, os senhores e a elite urbana não trabalhavam. No Brasil, trabalhos manuais não têm o menor valor. Aqui, mais vale ser doutor. A cidadania sempre será um horizonte distante enquanto a elite econômica aparelhar o Estado por meio da cooptação de políticos. A gestão dos negócios públicos como se fossem privados sempre fará com que os interesses e as necessidades do povo fiquem em plano secundário”, conclui Costa, que também lançou Para uma nova história e Escritos coligidos: textos de Sérgio Buarque de Hollanda.



O REINO QUE NÃO ERA DESTE MUNDO
.  De Marcos Costa
.  Editora Valentina
.  280 páginas, R$ 29,90
.  E-book: R$ 19,90

"Se não fosse o ato suicida da princesa Isabel, até quando isso iria? Adentraríamos o século 20 com escravos?”

. Marcos Costa, historiador

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