Todos somos Voltaire

Ideias do pensador francês voltam à tona depois do massacre no Charlie Hebdo. O aumento da venda de livros assinados por ele reforça o legado do autor de Tratado sobre a tolerância

por 21/02/2015 00:13
Joel Saget/AFP
Joel Saget/AFP (foto: Joel Saget/AFP)
O ataque terrorista contra cartunistas do jornal Charlie Hedbo, em Paris, em 7 de janeiro, rendeu repercussões inesperadas pelo mundo. O mercado editorial sentiu o impacto da mobilização globalizada. Na Europa, em apenas duas semanas depois dos ataques, editoras e livrarias venderam mais obras de Voltaire do que em um ano inteiro. “É como se Voltaire tivesse sido redescoberto”, comentou um dos principais especialistas na obra do francês, Andrew Brown.

Em 1763, Voltaire (1694-1778) publicou seu Tratado sobre a tolerância, como uma reação ao caso de Jean Calas. O escritor saiu em sua defesa do protestante depois que ele foi condenado à morte. Um tribunal o considerou autor do assassinato do próprio filho, num esforço desesperado para que não se convertesse ao catolicismo. Calas declarava sua inocência. Voltaire atacou as autoridades católicas francesas por sua intolerância e insistiu que a crença de uma pessoa não pode estar acima da lei de um país. O resultado foi uma obra sobre a tolerância religiosa que fustiga sem pudores os extremistas, inclusive da parte do Estado.

“Menos dogmas”, apelava Voltaire. Nas redes sociais, milhares de imagens do escritor sob o título Je suis Charlie foram compartilhadas. Em discursos e pela internet, uma suposta frase de Voltaire passou a ser repetida: “Não concordo com uma só palavra que você diga. Mas vou defender seu direito de dizê-la até minha morte”. Especialistas garantem: ele jamais disse isso. Seja qual for a versão correta, a disseminação das referências a Voltaire foi logo sentida nas vendas de suas obras, que por anos experimentam modesta performance.

Segundo Brown, as quatro edições do Tratado sobre a tolerância venderam 300 cópias na semana seguinte ao atentado na França. Mas, nos sete dias posteriores, chegaram a 10 mil. “Em 11 anos, foram vendidos cerca de 120 mil exemplares. Em uma semana, as vendas foram iguais a um ano”, comparou. No site da Amazon.fr, o livro passou a ser o número 1 em religião, filosofia e outros gêneros. Algumas editoras da França decidiram imprimir novas versões do texto, diante do êxito e da procura até mesmo por escolas, que passaram a incluir as obras nos programas deste ano.

O pesquisador reconhece que o mundo em que vivia Voltaire era diferente do nosso. “Mas ele já era contra tudo o que representa terrorismo ou extremismo religioso. Ele teria condenado tudo isso”, garantiu o britânico, que dirige um centro de estudos na pequena cidade de Ferney-Voltaire, onde o escritor passou anos para evitar ser preso pelas autoridades em Paris. O especialista lamenta que escolas e sociedade não tenham dado atenção às obras do francês nos últimos tempos. “Voltaire foi preso por ser impertinente. Não tolerava a hipocrisia e fez questão de lutar contra o extremismo religioso. Ele tem muito a nos ensinar”, acredita.

Voltaire chegou a Genebra em 1755, fugindo do que acreditava ser ameaça real à sua vida por parte da nobreza francesa. Na cidade suíça, ele radicalizaria o discurso contra a intolerância religiosa. Poucos anos depois e já com uma grande fortuna, ele compraria um castelo na região ao lado de Genebra, conhecida como Ferney. Ali, construiu fábricas para relojoeiros suíços e casas populares. Logo depois da morte do escritor, a cidade adicionou Voltaire a seu nome. A praça central ganhou uma estátua em sua homenagem.

Nem todos concordam com o uso da imagem de Voltaire para marcar o ataque contra o Charlie Hebdo. A principal crítica se refere à peça que ele escreveu em 1736, O fanatismo ou Maomé. O protagonista é um profeta impostor e cruel que acaba ganhando o apoio dos órgãos de censura da época, liderados por católicos. Especialistas defendem o autor, explicando que o ataque era contra “todas as religiões”. A peça estreou em 1741, mas não teve vida longa. Quando bispos se deram conta de que o ataque era contra a Igreja Católica, o espetáculo foi proibido.

Pesquisadores garantem que Voltaire mudou de atitude sobre o Islã ao longo de sua vida. Em 1770, ele disse: “Outros povos podem pensar melhor que os habitantes da Europa”. Referia-se ao Oriente Médio.

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