“Menos dogmas”, apelava Voltaire. Nas redes sociais, milhares de imagens do escritor sob o título Je suis Charlie foram compartilhadas. Em discursos e pela internet, uma suposta frase de Voltaire passou a ser repetida: “Não concordo com uma só palavra que você diga. Mas vou defender seu direito de dizê-la até minha morte”. Especialistas garantem: ele jamais disse isso. Seja qual for a versão correta, a disseminação das referências a Voltaire foi logo sentida nas vendas de suas obras, que por anos experimentam modesta performance.
Segundo Brown, as quatro edições do Tratado sobre a tolerância venderam 300 cópias na semana seguinte ao atentado na França. Mas, nos sete dias posteriores, chegaram a 10 mil. “Em 11 anos, foram vendidos cerca de 120 mil exemplares. Em uma semana, as vendas foram iguais a um ano”, comparou. No site da Amazon.fr, o livro passou a ser o número 1 em religião, filosofia e outros gêneros. Algumas editoras da França decidiram imprimir novas versões do texto, diante do êxito e da procura até mesmo por escolas, que passaram a incluir as obras nos programas deste ano.
O pesquisador reconhece que o mundo em que vivia Voltaire era diferente do nosso. “Mas ele já era contra tudo o que representa terrorismo ou extremismo religioso. Ele teria condenado tudo isso”, garantiu o britânico, que dirige um centro de estudos na pequena cidade de Ferney-Voltaire, onde o escritor passou anos para evitar ser preso pelas autoridades em Paris. O especialista lamenta que escolas e sociedade não tenham dado atenção às obras do francês nos últimos tempos. “Voltaire foi preso por ser impertinente. Não tolerava a hipocrisia e fez questão de lutar contra o extremismo religioso. Ele tem muito a nos ensinar”, acredita.
Voltaire chegou a Genebra em 1755, fugindo do que acreditava ser ameaça real à sua vida por parte da nobreza francesa. Na cidade suíça, ele radicalizaria o discurso contra a intolerância religiosa. Poucos anos depois e já com uma grande fortuna, ele compraria um castelo na região ao lado de Genebra, conhecida como Ferney. Ali, construiu fábricas para relojoeiros suíços e casas populares. Logo depois da morte do escritor, a cidade adicionou Voltaire a seu nome. A praça central ganhou uma estátua em sua homenagem.
Nem todos concordam com o uso da imagem de Voltaire para marcar o ataque contra o Charlie Hebdo. A principal crítica se refere à peça que ele escreveu em 1736, O fanatismo ou Maomé. O protagonista é um profeta impostor e cruel que acaba ganhando o apoio dos órgãos de censura da época, liderados por católicos. Especialistas defendem o autor, explicando que o ataque era contra “todas as religiões”. A peça estreou em 1741, mas não teve vida longa. Quando bispos se deram conta de que o ataque era contra a Igreja Católica, o espetáculo foi proibido.
Pesquisadores garantem que Voltaire mudou de atitude sobre o Islã ao longo de sua vida. Em 1770, ele disse: “Outros povos podem pensar melhor que os habitantes da Europa”. Referia-se ao Oriente Médio.