Tomás González empresta uma personalidade e dá voz ao pai, David, narrador da história, que diz dos sentimentos extremos, das contradições. São contundentes os trechos em que o personagem reconhece a força da esposa e da mãe de Jacobo e as urdiduras de carinho que a família, unida, tece entre todos. González enfrenta o paradoxo das coisas distintas e escreve para unir extremos, opostos inconciliáveis à primeira vista. A morte. E a vida. Duas medidas, duas doses de intensidades, breu e luzes reunidos que, transformados em literatura, deixam um gosto de um mistério renovado no cerne das coisas que ainda existem.
O texto, a prosa, as palavras de Tomás González não se fazem, digamos, sozinhas, no aleatório. O escritor não deixa permissões para um certo distanciamento entre autor e obra, como não raro acontece, de acordo com as características e peculiaridades de cada artista. O leitor embarca e é levado nesse sentido, quando vida e literatura tornam-se irmãs, tornam-se indissociáveis, mesmo diante de abismos e absurdos.
O personagem principal (como também todos os outros personagens), David, acima de tudo (e dentro de tudo) aceita, de forma ampla, de forma não menos absurda, e tenta compreender a natureza, a selvageria dos corações humanos que, mesmo diante e dentro do caos, mesmo fulminados pelas perdas inexoráveis, sem idas e sem voltas, fazem surgir, inventam, ainda e sempre, na contramão do vento, sementes que guardam, contudo, o mistério das luzes todas, de um sol que é o mesmo que dizer utopia e força.
González aciona, com um misto de raiva e ternura, com uma violência necessária, uma espécie de acelerador. Ele descamba para o futuro que se esconde nas sementes que só as palavras trazem. Um futuro incerto. As coisas são como são. As coisas simplesmente acontecem. Um acidente, o movimento dos barcos nas águas pouco transparentes. González interfere, sóbrio, lúcido e louco, na contramão dessas águas, mas dentro de um mesmo fluxo que obedece ao vento. O escritor enxerga para muito além da estrada sempre nua. Tomás González confia nas altitudes do verbo. A vida é feita de facas e fogos. O colombiano aposta num procedimento operacional, digamos, peculiaríssimo. Ele precisa dizer: não é preciso ir longe para pegarmos o sol com as mãos, mesmo diante de movimentos traiçoeiros, mesmo diante de um processo brutal, infame.
Este belo escritor reverencia a existência da beleza e principalmente a inexorabilidade da arte. David, não poucas vezes, por meio de uma luz esquiva, através das cores e do movimento das águas e dos pássaros que o cercam, toca e é tocado pelo amor. Aqui chegamos ao fundo de tudo, de toda a essência do livro. O centro do amor, que tantas vezes é infinito, dependendo de como enxergamos as coisas, a fragilidade das coisas transitórias.
González carinhosamente acende dentro da gente vontades, quando descobrimos necessidades estranhas, de cantar quando estamos com medo, de persistir na alegria, mesmo que porventura existam tantos tiros, acidentes e naufrágios, visíveis e invisíveis. Existe simetria, existe sentido (ou pelo menos criamos, inventamos ilusões) nesse processo louco, nessa dialética de luz e sombra, encontro e desencontro, tapa e beijo, vertigens de mais e mais medo e nada mais.
David, se não pode com tudo isso, pinta; se é impedido de colorir, escreve; se o escuro escarnece e inviabiliza a palavra, fica com o homem a certeza da memória e a saudade dos seus e das suas. Quem disse que seria fácil essa nossa trajetória rumo ao incerto? Diante da dor, que não passa, os personagens de Tomás não encontram respostas, mas transcendem por meio da força do carinho e da ternura, tudo isso junto e misturado. Fios que se encontram, que se entrecruzam, surgindo faíscas.
Tomás González nos ajuda a renovar o olhar que temos sobre o mundo. Se a morte apenas mata, dia a dia, minuto a minuto, a vida, impertinente, transcende, transfixa, transforma, mas para o bem, rumo a uma claridade mínima, tênue, viável até onde der de ser.
Somente as ondas. Só o mar é estável. Às vezes, estruturas inteiras desmoronam, desabam, mais rápido que o necessário. Tomás González, assim, tenta, debilmente, com a humildade de um cisco, acender aquela luz difícil que permanece dentro e fora da gente, ardendo diante de tudo, apesar de tantas provas e provações. Não existiria a carne se não fosse o sangue que nela corre, nesse muito nosso turbilhão de certezas também provisórias. Tomás González nasceu em Medellín, na Colômbia, em 1950.
A LUZ DIFÍCIL
. De Tomás González
. Editora Bertrand Brasil
. 126 páginas, R$ 30