Na linha das cicatrizes

O chileno Pedro Lemebel encenou, de maneira virulenta e poética, as relações amorosas dos marginalizados. Para Roberto Bolaño, ele não precisou escrever poesia para ser poeta

por 14/02/2015 00:13
Reprodução internet
Reprodução internet (foto: Reprodução internet)
Yale Gontijo


O escritor Pedro Lemebel morreu em 22 de janeiro, aos 60 anos, vítima de câncer de laringe. É possível que o nome Lemebel não faça soar o sino para grande parte dos brasileiros. O chileno é pouquíssimo conhecido na América Latina.

A literatura de Lemebel sempre foi marginal, periférica, desviante. Ele se tornou escritor, artista plástico e performer, contrariando o destino dos pais, um padeiro e uma empregada doméstica. O Chile (assim como boa parte da América católica) é um país conservador, desses que preferem lavar as sujeiras dos lençóis em ambientes privados. O exato oposto da coragem de Pedro, o travesti (maricón, amariposado), nascido periférico e dono de literatura escrita com as cicatrizes de muitas feridas.

Em contos virulentos sobre o amor entre iguais, a caneta de Pedro usava as gírias dos garotos que vendem o corpo nas ruas de Santiago e das santas prostitutas dos cabarés ignorados da capital do Chile para falar das minorias ignoradas pela história oficial. “Não sou Pasolini pedindo explicações, não sou Ginsberg expulso de Cuba, não sou um veado disfarçado de poeta. Não necessito de disfarce, esta é minha cara. Falo por minha diferença”, escreveu.

Clelia Inés Moure fez de Pedro seu objeto de estudo em doutorado em narrativas orais como permanências para o registro histórico. A pesquisadora elencou as características da literatura de Lemebel: “O fragmentário, o descontínuo, o inconcluso, o minoritário, optando pelo caso singular e o propósito de historiar o sucesso”.

A especialista observou que, no caso de Pedro não existem barreiras entre autor e alter ego. “As denúncias de perseguição homofóbica que marcam e determinam tanto seus livros, assim como sua figura pública e midiática, são as vozes de indivíduos ou setores sociais marginalizados, esquecidos pela cartografia urbana, perseguidos pelas forças da ordem e ignorados pela indiferença social, que não os reconhece (porque permaneceram invisíveis mesmo depois do fim da ditadura). Essas vozes se fazem audíveis em um registro discursivo eminentemente poético, procedimento que determina a singularidade de Lemebel”, escreveu Clelia.

Em dado momento, a travesti escritora foi cotada para ganhar o Prêmio Nacional de Literatura em seu país, mas morreu sem receber a honraria. Não significa que não tenha sido distinguida com algum reconhecimento. Roberto Bolaño – outro chileno, igualmente escritor e igualmente genial – classificou assim o companheiro de lutas contra o regime militar chileno: “Pedro Lemebel não precisa escrever poesia para ser o maior poeta da sua geração”.

EXTRAVAGANTE Pedro nasceu em Santiago de Chile, em 1955. A infância em uma favela de Santiago o colocou em contato com índios remanescentes da etnia mapuche, com os quais se identificava pelos olhos puxados e histórias de resistência, além da ideologia comunista.

Pedro foi o primeiro de seu bairro a frequentar a universidade. Passou a ser professor de artes plásticas em escolas conservadoras durante o período militar que afundou o projeto socialista de Salvador Allende, dizimado pelo golpe de 11 de setembro de 1973. A figura de cabelos longos e roupas extravagantes seria subjugada durante a ditadura de Augusto Pinochet.

As coletâneas de seus contos, em língua espanhola, podem ser adquiridas com alguns cliques pela rede mundial de computadores: La esquina es mi corazón (1995), De perlas y cicatrices (1998), Adiós mariquita linda (2004), Serenata cafiola (2008) e Háblame de amores (2012). No Brasil, a editora Cesarea publicou Essa angústia louca de partir, em formato digital.


TRECHO

O fugitivo de Havana
De Pedro Lemebel

“Aconteceu num daqueles dias em que o amor é uma boca ardente respirando o ar quente pelas calçadas de Havana. Era a inauguração da Sexta Bienal de Arte em Cuba e como convidado oficial calcei o salto agulha encaminhando-me para a Praça da Catedral pela rua empedrada e torta da cidade velha. Os meninos já não me pediam dólares. Tinham se acostumado aos contínuos passeios de uma bicha chilena cambaleando nos paralelepípedos coloniais daquelas ruas estreitas, onde não cabiam carros e sim a bagunça festiva dos mancebos mulatos, balançando suas partes no canavial erótico da tarde. Princesa, para onde vai, rainha, para onde quer ir? Murmurava esse tropel de jovens refrescando-se na calçada. Com essa forma doce que usa o havanês para dar uma cantada. Com esse cântico amoroso que acolhe, que nos faz enrubescer como uma orquídea adolescente. Você vai por aí rebolando a calçada ao ritmo dos seus beijos, de suas insinuações e cantadas. Mas você não tem mais 40 nem 30 nem 20 anos”
. Publicado em Essa angústia louca de partir

ESSA ANGÚSTIA LOUCA DE PARTIR

• Cesarea, edição digital
• R$ 8.
• Informações: www.cesarea.com.br

MAIS SOBRE PENSAR