Ausência iluminada

Museu de Sant%u2019Ana, na cidade histórica de Tiradentes, exibe oratório virtual que remete ao oculto, ao segredo e à profunda relação do ser humano com o sagrado

por 14/02/2015 00:13
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Clovis Salgado Gontijo


    
Muitos provavelmente deixarão o Museu de Sant’Ana, em Tiradentes, sem passar pelo último nicho da exposição. Com certeza, também o teria negligenciado, caso a atendente Juliana não tivesse insistido. Confiei na sugestão dada por seus olhos azuis e pacíficos, curioso a partir daquele momento pelo que guardaria o espaço intitulado Ausência iluminada.

Como do outro lado do corredor, nele também se encontra um vídeo, com relato da doadora da coleção, Ângela Gutierrez. Só que, nessa extremidade, é preciso ultrapassar um anteparo para se descobrir o conteúdo da Ausência iluminada. A ausência lida com o escondido, não é à toa a cobertura, reflito. Ao assistir ao vídeo, o oculto novamente se manifesta. À diferença da projeção anterior, em que vemos o rosto e ouvimos o depoimento de Ângela, agora só se ouve a sua voz. Enquanto isso, na tela, projeta-se o contorno desenhado de um oratório imaginário sobre fundo escuro.

Talvez não valha a pena revelar aqui o segredo em que consiste a mencionada ausência. Que este texto seja um convite para visitar o precioso Museu de Sant’Ana, sem excluir o que há nele de visível nem de invisível. Em linhas gerais, sem estragar de todo a surpresa, é uma imagem específica da santa que ali falta.

Se não tivesse visitado esse recanto, a coleção teria me parecido completa, “perfeita”. Não haveria como identificar a ausência. Penso que o mesmo se aplica a tantas obras de arte que eventualmente tiveram outros capítulos, cenas, compassos e movimentos, mas, por serem estes hoje desconhecidos, não nos fazem a mínima falta. Na arte, muitas vezes se descarta em busca da forma perfeita, acreditando-se que a beleza é obtida quando a ela nada se pode acrescentar ou excluir. Portanto, nesse contexto artístico, não há motivo para evocar uma ausência que é, na verdade, um resto.

No Museu de Sant’Ana, a ausência também veio de uma escolha livre, assim como ocorre em relação ao criador de uma obra de arte. Contudo, a recusa de Ângela em incorporar certa imagem à sua coleção não foi movida pelo desejo de eliminar o supérfluo. Muito pelo contrário, a imagem em questão era sumamente necessária. Necessária para a senhora do interior de Minas, que, sob a proteção da mãe de Maria, presentificada por aquela imagem, dera à luz e criara seus sete filhos. Necessária para Ângela, que, em meio às suas 300 Sant’Anas, não se esqueceu dessa em particular, a ponto de oferecer-lhe no novo museu um oratório virtual.

Lembro-me agora do altar ao Deus desconhecido, visto por São Paulo em ocasião de sua pregação por Atenas. Quem sabe a força irradiada desse minúsculo espaço do Museu de Sant’Ana provenha da necessidade mítica por uma divindade ainda não revelada? No entanto, para Ângela, a imagem ausente revelou-se um dia. Revelou-se para logo em seguida desaparecer, graças à atitude desprendida e generosa da colecionadora. Se o sagrado não se dá a conhecer visualmente nesse espaço do museu, encontramos os traços de nossa compreensão cristã do sagrado no momento em que Ângela abdica da posse daquela imagem e em que, seguindo algumas estratégias próprias à tradição mística, nos torna presente sua ausência fecunda e “mais que luminosa”.

. Clovis Salgado Gontijo é doutor em estética pela Faculdade de Artes da Universidade do Chile e professor assistente da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje)

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