Laboratório DE IDEIAS

Cartas trocadas entre o pensador católico Alceu Amoroso Lima e Carlos Drummond de Andrade oferecem novos caminhos para a interpretação da história da literatura produzida no Brasil

por 31/01/2015 00:13
ARQUIVO O CRUZEIRO - 1955
ARQUIVO O CRUZEIRO - 1955 (foto: ARQUIVO O CRUZEIRO - 1955)
Guilherme Sobota



“Sinto pouca disposição para crer”, escreve Carlos Drummond de Andrade a um dos maiores intelectuais brasileiros católicos do século 20: Alceu Amoroso Lima – e essa conversa sobre a religião é um dos pontos mais interessantes do livro Correspondência de Carlos Drummond de Andrade & Alceu Amoroso Lima (Editora UFMG), organizado por Leandro Garcia Rodrigues.

Na primeira carta enviada por Drummond, em janeiro de 1929, o poeta, perante o já respeitado crítico literário Amoroso Lima (que usava o pseudônimo Tristão de Athayde), revela: “Sou dos maus, dos piores católicos que há por aí. (...) admiro e quase que invejo os que como V. deram uma solução definitiva a esse problema religioso que nós carregamos como uma ferida”. Ao que o crítico responde, uma semana mais tarde: “Pois bem, a Fé é uma ferida quase crônica. Creia, é sentir toda a falta do mundo em torno de si, se bem que será também sentir o equilíbrio profundo em tudo”. A mera sugestão de que a crença não é um estado de tranquilidade profunda incomoda o poeta, que na tréplica, no início de março de 1929, diz: “Mas então não sei o que se deva procurar na religião”.

Esse é só o início da correspondência que agora vem à luz, fruto do trabalho de Leandro Garcia Rodrigues, professor do Programa de Especialização em Estudos Literários da PUC Rio, especialista na obra de Alceu Amoroso Lima. Com olhos de águia (a caligrafia da dupla, especialmente a de Amoroso Lima, é praticamente um código criptografado), Rodrigues reuniu a correspondência trocada entre 1929 e 1982, um total de 132 documentos, entre cartas, telegramas e bilhetes. Os textos de Alceu estão no Museu da Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, e as cartas de Drummond estão no Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade, em Petrópolis.

O livro tem prefácio de Marcos Antonio de Moraes, introdução do próprio Rodrigues, uma seção extensa de textos de ambos publicados e uma bibliografia de apoio, além de fotos e reproduções das cartas e bilhetes. “A epistolografia ainda é um campo tímido nos estudos literários brasileiros”, opina o especialista. “Crítica epistolográfica é um termo criado por mim mesmo e aceito pelos poucos especialistas no assunto, diz respeito à exegese (hermenêutica) que se faz a partir do texto epistolar – a interpretação de uma carta, o cruzamento de informações e dados, enfim, com ferramentas interpretativas próprias deste campo, e não com as ferramentas da crítica tradicional” – com essa tese, Rodrigues aposta que o livro traga novas possibilidades interpretativas “do canône da nossa própria história literária”, como diz na introdução (em setembro, ele lança outro livro com esse intento, com a correspondência entre Alceu Amoroso Lima e Mário de Andrade, pela Editora da USP).

Uma das questões que aparecem então, com esse tipo de análise, é justamente o esgotamento desse tipo de comunicação – muito substituída por mensagens informais e bate-papos instantâneos – que representa, na opinião de Rodrigues, uma perda substancial. “A troca de correspondência não era apenas por informação: a carta era uma espécie de ‘laboratório de ideias’, eles construíam o pensamento nas missivas, por isso são textos raros e importantes, pois acompanham a evolução do pensamento dos correspondentes envolvidos.”

É interessante também notar o evoluído pensamento católico de Amoroso Lima, que deixou uma espécie de vácuo na intelectualidade do país com sua morte, em 1983. “Depois dele, alguns nomes importantes da Teologia da Libertação também conseguiram um bom espaço na intelligentsia brasileira, mas agora está tudo muito rarefeito, é difícil alguém escutar um intelectual cristão”, diz Rodrigues, autor do volume que traz a correspondência entre Frei Betto e Leonardo Boff com Alceu Amoroso Lima, prometido pela Editora Vozes para março. E lamenta: “Há grande desprezo e preconceito do mundo universitário em relação aos intelectuais que professam algum tipo de fé”.


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