Profeta da era virtual

Livro construído a partir de fragmentos de textos póstumos revela a riqueza do olhar do cineasta russo Serguei Eisenstein sobre a história do cinema, inclusive pelo fato de antever o formato 3D

por 31/01/2015 00:13
MARGARET BOURKE-WHITE/MOSTRA UNSEEN CINEMA: AMERICA%u2019S AVANT GARDE
MARGARET BOURKE-WHITE/MOSTRA UNSEEN CINEMA: AMERICA%u2019S AVANT GARDE (foto: MARGARET BOURKE-WHITE/MOSTRA UNSEEN CINEMA: AMERICA%u2019S AVANT GARDE )
João Lanari Bo



Uma personalidade como a de Serguei Eisenstein escapa a classificações precipitadas: conhecido pelas obras-primas que produziu no cinema, que o ligam ao período revolucionário na Rússia dos anos 1920, Eisenstein foi, no entanto, muito mais do que um homem da cultura engajado nas causas político-sociais. Se olharmos para o passado, seria tido como um artista renascentista, representante do tempo em que a ciência e a arte andavam juntas; para seus contemporâneos, foi visto como alguém obcecado com a convergência entre teoria e prática; finalmente, nos dias de hoje, a matriz Eisenstein se nos aparece como uma fonte plural em estado de permanente inovação, dotado de uma espécie de subjetividade “digital”, que vê a história como o “espaço de uma dispersão” e recusa princípios de “causalidade, de analogia e de homogeneidade”.

Não é uma apreciação exagerada: a noção de história como “dispersão” vem de Michel Foucault, e essa é a leitura atual que fazem do diretor soviético numerosos pesquisadores e exegetas, ofegantes com a riqueza que emana dos seus escritos e projetos, quase sempre inacabados, mas incessantemente certeiros e proféticos. Contribuiu para essa percepção a descoberta de oito ou nove pastas deixadas pela viúva de Eisenstein no Arquivo Central de Literatura e Arte da URSS, publicadas no Brasil pela Azougue Editorial, sob o título Notas para uma história geral do cinema. É conhecido o esmero com que os comunistas preservaram arquivos pessoais, de documentos a bilhetes íntimos.

No caso do Eisenstein, que acumulou casos de rebeldia contumazes durante toda a sua vida, o esmero rendeu frutos: as oito ou nove pastas, cuidadosamente guardadas após sua morte precoce, em 1948, com 50 anos, sobreviveram ao fim da Era Stalin – como dizem as testemunhas, um período de “alta intensidade persecutória”. E mais: resistiram à progressiva decadência do regime comunista, ao fim (e derrota soviética) da Guerra Fria, e à queda do muro de Berlim, em 1989. O que ficou, e chega até nós em tradução direta do russo, é um extraordinário compêndio das preocupações do diretor, que vão da genealogia cultural da imagem às pulsões profundas que motivam o público, dos estudos antropológicos à montagem cromática, e – pasmem – do “cinema de relevo” (o nosso 3D) à televisão.

Mais conhecidos, os textos teóricos publicados em vida, muitos deles traduzidos no Brasil, mostram seu engajamento naquela que foi talvez a maior aventura espiritual do século 20, a revolução bolchevique. A transição abrupta do estado semifeudal czarista para a utopia socialista seduziu as inteligências inquietas e produziu um dos mais férteis momentos de expressão artística que se tem notícia. Serguei Eisenstein mergulhou de cabeça, de início no teatro e logo no cinema, estreando aos 26 anos com o fabuloso A greve. A simbiose entre a prática da realização cinematográfica e o exercício teórico revelou-se sobretudo pelo uso da “montagem de atrações”, pensada inicialmente para o teatro e adaptada à perfeição na montagem cinematográfica: a ideia era, como escreveu o diretor, “formar visões justas despertando contradições na mente do espectador, e forjar conceitos intelectuais acurados a partir do choque dinâmico de paixões opostas, utilizando para isso cortes de forte impacto psicológico”.

Um projeto abalizadamente dialético, de natureza construtivista, ou seja, inspirado nas novas perspectivas abertas pelas técnicas e materiais modernos e visando à transformação da sociedade. Encouraçado Potemkin, feito um ano depois, em 1925, é a consagração: o choque das “atrações” capta a atenção dos espectadores e exerce pressão emocional em direção a uma finalidade pré-concebida pelo diretor, a consciência da revolução social. A repercussão veio em escala global.

STALIN

Logo em seguida, veio também o choque de realidade. A gradual ocupação dos espaços dentro do Partido Comunista por Josef Stalin, no fim da década de 1920, terminou asfixiando o entusiasmo da classe artística. Eisenstein partiu para uma longa viagem que incluiu Europa, EUA e por fim México, onde rodaria um belíssimo projeto, que infelizmente não pôde finalizar. Combinada com o retorno difícil, em 1933, dado o paranoico clima político na União Soviética, a viagem acabou sendo um ponto de virada, conforme os biógrafos, no seu engajamento na revolução: a convicção na perspectiva teleológica da história – o presente é contraditório, mas o futuro aponta para a utopia socialista – ficou definitivamente abalada.

O devir histórico passou a ser cada vez mais um “espaço de dispersões”, com diferentes fluxos convergindo e divergindo, não necessariamente progredindo em direção a um objetivo comum. A evolução das formas cinematográficas, por exemplo, obedece a vários vetores, percepção que permitiu a Eisenstein escrever um brilhante ensaio sobre os desenhos de Walt Disney, ao mesmo tempo em que imaginava um roteiro sobre O capital, de Karl Marx, utilizando um monólogo interior inspirado em Ulisses, de James Joyce.

O magnífico Ivã, o terrível, sua última produção, em duas partes, corporificou essa nova visão: Stalin não gostou da segunda parte (dizem que “vestiu a carapuça”, projetando-se no delírio persecutório do antigo czar) e mandou interditar o filme. As notas ora publicadas foram escritas nessa época, tempos duros, certamente, mas que não impediram, mais uma vez, o voo livre da mente prodigiosa de Eisenstein.

. João Lanari Bo é professor de cinema da Universidade de Brasília (UnB)

TRECHOS


“Uma síntese das artes. Uma síntese real na técnica do cinema e na nossa estética. Em lugar dos ‘sonhos’ de síntese. Retorno da ideia de síntese dos gregos (início morfológico no ditirambo). As liturgias (arquitetura, órgão, vitral, plain chant, fusão do público com a ação). Diderot – Wagner – Scriabin – nós. Em quais etapas surgem as tendências à síntese? Nos períodos de unificação social.”

“O fenômeno do cinema. Os ‘pequenos quadros’ e o método do cinema. Do mosaico ao pontilhismo. O contraste dinâmico no lugar da mistura. Daumier e Tintoretto em micro. Goya, ‘Maragato’ em macro.”

NOTAS PARAUMA HISTÓRIAGERAL DO CINEMA


. De Serguei Eiseinstein
. Azougue, 400 páginas, R$ 86

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