A menina rebelde

Norma Bengell ressurge intensa, rebelde e verdadeira em autobiografia publicada pouco mais de um ano depois de sua morte. Atriz e diretora, ela fez história no cinema nacional

por 24/01/2015 00:13
Inversos/reprodução
Inversos/reprodução (foto: Inversos/reprodução)
Adriana Del Ré



A Linda, bombshell, ousada, doidivanas, corajosa, libertina, libertária. Quais desses seriam os melhores adjetivos para definir Norma Bengell? A autobiografia Norma Bengell, lançada, postumamente pela Inversos Editora, prova que a personalidade da atriz e diretora é inclassificável. Norma era um misto disso tudo e muito mais – alma complexa, daquelas que não passam incólumes. Organizada pela amiga da atriz, a produtora cultural Christina Caneca, a obra dá unidade a uma trajetória, muitas vezes, conhecida aos pedaços.

Há quem conheça a Norma Bengell do primeiro nu frontal na cinema, em Os cafajestes (1962), de Ruy Guerra; ou a Norma que fez carreira internacional; ou a Norma que, se manifestando publicamente contrária à ditadura no Brasil, era perseguida pelos censores e viu suas chances de trabalho se esvaírem; ou a Norma que testemunhou a própria carreira ser maculada pela acusação de desvio de milhões de reais na captação de recursos para seu filme O guarani (1996), da qual passou anos se defendendo; ou a Norma, nos tempos finais de vida e carreira, fazendo participação em Toma lá, dá cá, na Globo.

 “Ela começou a escrever entre 1975 e 1977 e acabou em 1989. Estava tudo espalhado, fui montando em casa como um quebra-cabeças. Levei quatro meses para fazer esse trabalho. Algumas páginas não dava para entender. Então, lia e ela ia complementando”, explica Christina Caneca. Por coincidência, a editora procurou a atriz para lhe propor escrever sua biografia. Christina já tinha mais de meio caminho andado. Uma equipe finalizou o restante, com entrevistas com Norma. Ela morreu em outubro de 2013, aos 78 anos, antes de o livro ser lançado. Com prefácio do produtor Luiz Carlos Barreto, a obra reúne farto material fotográfico.

AZUL-VIOLETA

Nascida em pleno carnaval de 1935, Norma Bengell era filha de pai belga, de “olhos azul-violeta”, que ganhava a vida consertando pianos, e de mãe de família abastada, mas que foi rejeitada por ela depois de ter se apaixonado por um imigrante, uma afronta para o patriarca integralista. Norma teve uma infância pobre. Acostumada à vida confortável, a mãe arregaçou as mangas e começou a trabalhar fora. Filha única, Norma testemunhava as constantes brigas dos pais. “Minha infância, longe de ter sido o lindo carrossel que toda menina espera, era uma vertiginosa montanha-russa, com muitos altos e baixos. Acho que, por isso, tenho estes olhos tristes e esta ruga na testa. Basta olhar para as minhas fotos”, diz ela no livro.

Depois da separação dos pais, Norma foi parar no colégio interno comandado por freiras alemãs. Uma estrutura rígida, que, segundo a atriz, havia lhe impactado da forma contrária a que seus pais imaginavam: “A doce Norminha havia virado uma menina rebelde”. Norma saiu daquele colégio, mas, tempos depois, largou os estudos. Foi trabalhar fora para ajudar em casa, como modelo em ateliê de moda e vedete. Aprendeu a cantar e atuar na raça. Sem didatismo, só na intuição. Gravou o primeiro comercial para a TV, em 1955.

Norma exalava sensualidade, tanto no palco quanto numa inocente propaganda de TV do achocolatado Toddy. O diretor Carlos Manga percebeu isso e a convidou para participar da chanchada O homem do Sputnik (1959), com Oscarito. Ela no papel de uma pseudo Brigitte Bardot. E foi para o teatro e para a TV.

Mais tarde, frequentando a turma do Cinema Novo, Norma ganhou o papel de prostituta em O pagador de promessas, de Anselmo Duarte, e, a convite de Jece Valadão, fez Os cafajestes, de Ruy Guerra, ambos de 1962. O primeiro filme a levou a Cannes – o longa foi selecionado para representar o Brasil no festival de cinema e ganhou o prêmio principal. O outro, apesar de proibido no Brasil por causa de seu nu frontal, trouxe-lhe reconhecimento.

Cannes foi um trampolim para a carreira internacional. De lá a atriz partiu para a Itália e o diretor Alberto Lattuada, expoente do neorrealismo italiano, contratou-a para o papel feminino de O mafioso. O elenco se hospedou no mesmo hotel, em Palermo, onde estava a equipe de O leopardo, com Burt Lancaster e Alain Delon, e ela quase participou também do filme do grande Visconti. Na temporada europeia, a vedete foi dando lugar à mulher de estilo, que se tornou referência de moda. “Esse glamour era na tela”, revela Christina. Todos os homens queriam a bela e sedutora Norma.

AMORES


Em suas memórias, os muitos relacionamentos que teve são revisitados. Durante O pagador de promessas, a atriz relembra sua relação amorosa com Anselmo Duarte. Na época das filmagens de O mafioso, engatou um intenso romance com Alain Delon, que, na ocasião, oficialmente ainda namorava a atriz austríaca Romy Schneider. E se casou com o ator italiano Gabriele Tinti. “Gabriele foi a grande paixão da vida dela”, afirma a organizadora do livro. Um casamento que não resistiu ao estilo livre de viver dos dois. Depois de tantos homens, Norma se apaixonou por uma mulher, com quem viveu por anos. A atriz fala também de seus abortos. “Cada vez que tirava o filho de um homem que amava, era como se tirasse esse homem de dentro de mim”, revela a atriz.

Numa prova da disciplina espartana que exigia de si mesma, Norma relata um momento extremo. Depois de fazer mais um aborto, foi para as filmagens de Os cafajestes e subiu e desceu de dunas, em Cabo Frio, com o sangue escorrendo pelas pernas. “Não podia atrasar as filmagens para me recuperar”, justifica ela. “Norma não se lamentava de nada, só de duas coisas: de ter feito os abortos e nunca ter tido um filho, e da mágoa do episódio de O guarani”, conta Christina.

A atriz e diretora, que já havia rodado Eternamente Pagu, em 1988, defende-se no imbróglio envolvendo O guarani, pelo qual foi acusada de lavagem de dinheiro, evasão de divisas e apropriação indébita em relação à prestação de contas da captação de recursos. Os processos não foram adiante. “Ela tinha tendência à depressão, mas o filme foi o divisor de águas no quadro. Ela não ficou com dinheiro algum. Não eram pessoas de má-fé (que trabalhavam com Norma), mas elas não tinham capacidade de fazer prestação de contas”, afirma Christina.

Um tombo mal curado deixou a atriz numa cadeira de rodas. “Queria ser diretora. Afinal, poderia dirigir da cadeira. Mas todos sumiram”, constatou Norma Benguell.

NORMA BENGELL
. De Norma Bengell
. Inversos Editora
. 366 páginas, R$ 59,90

. Adriana Del Ré é jornalista

 

 

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