Anatomia de um agente NAZISTA

Biografia desmistifica a figura de Reinhard Heydrich, colaborador de Adolf Hitler e um dos articuladores do horror nos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial

por 17/01/2015 00:13
DAVID W CERNY/REUTERS
DAVID W CERNY/REUTERS (foto: DAVID W CERNY/REUTERS)
João Lanari Bo

Se algum acontecimento marcou o século 20, este foi, sem dúvida, a Segunda Grande Guerra. Ou apenas a grande guerra – há quem prefira situar os dois conflitos globais do século como um único fenômeno. Robert Gerwarth, o historiador que escreveu a notável biografia acadêmica recém-lançada pela Cultrix sobre Reinhard Heydrich, intitulada O carrasco de Hitler, calcula em 40 mil o número de livros sobre a 2ª Guerra Mundial. Some-se um número análogo de filmes, e a resultante só pode ser uma nebulosa de referências, com muita mistificação e pouca objetividade. Seu estudo logrou um feito raro nesse cenário: combinar o rigor da pesquisa acadêmica com uma escrita fluente e cativante.


Sim, cativante, a despeito dos horrores perpetrados e/ou alavancados por Heydrich. A alcunha de carrasco lhe foi imposta pelo maior escritor alemão do século, Thomas Mann. Lidar com um trauma histórico dessas proporções não é fácil sob qualquer circunstância, ainda mais se o objeto do estudo foi um dos principais atores da chamada “solução final” dos judeus e outros grupos, como ciganos, testemunhas de Jeová, maçons, homossexuais, deficientes mentais, além de, pura e simplesmente, opositores políticos do nazismo. Uma sucessão de crimes inimagináveis para a civilização europeia dita humanista, que foram projetados e executados racionalmente, como se fossem a aplicação de princípios consagrados de administração pública.


A personalidade de Heydrich, em princípio um burocrata carreirista como tantos outros que circulam à nossa volta, não apresenta traços de psicopata serial killer como supõe uma leitura superficial inspirada numa demonização caricatural dos nazistas, consequência da indústria cultural ávida de lucros; ele tampouco foi um mero representante da “banalização do mal”, como sugere uma certa imagem de criminosos nazistas cristalizada no imaginário popular a partir do famoso relato de Hanna Arendt sobre o julgamento de Adolf Eichmann em 1961 (Eichmann, aliás, trabalhou com Heydrich). O historiador se propôs, de saída, a despir a figura do seu biografado de todos os extremos e falsas crenças.


Não é tarefa fácil. A família Heydrich era relativamente abastada: o pai, músico erudito e compositor de óperas, foi proprietário de um conservatório de prestígio em Halle, perto de Berlim. Reinhard, exímio violinista, viu a casa cair logo depois da Primeira Guerra Mundial, que lançou a Alemanha numa espiral de turbulências políticas e alta inflação. Em sua cidade, como em várias outras, milícias de extrema-direita duelaram seguidamente contra grupos de esquerda.


O jovem ambicioso ingressou na Marinha e passou os anos 1920 à margem da pancadaria promovida pelos nazistas, até ser expulso da corporação por uma falsa promessa de noivado – patético exemplo do moralismo conservador dos militares prussianos, de efeitos funestos. Conheceu, a seguir, sua futura esposa, Lina, nazista entusiasmada, que o levou a ingressar em 1931 na temível SS de Himmler. Para ele, frustrado com o fracasso na Marinha, era uma chance de ouro de fazer uma “carreira rápida”. Tornou-se em pouco tempo o quadro mais próximo de Himmler, que, por sua vez, era um dos nazistas mais próximos a Hitler, eleito em 1933.

DEPORTAÇÃO No poder, Himmler e Heydrich iniciaram sistemática perseguição a tudo o que fosse hostil à ideologia nazista, de comunistas e ativistas antinazistas a supostos desvios da eugenia racial idealizada por Hitler e colaboradores. Os judeus eram um dos alvos mais visíveis, senão o mais visível, como se sabe, de ações terroristas de intimidação e políticas de deportação. Deportar os judeus da Alemanha e países anexados – Áustria, República Tcheca, logo Polônia – foi objeto de um enorme esforço político e logístico do qual Heydrich foi um dos principais articuladores. Possibilidades que hoje soam delirantes – deportar de 4 milhões a 5 milhões de pessoas para Madagascar e criar um “cordão sanitário” em torno da ilha – foram seriamente consideradas. Na prática, deportar significava expulsar para países recém-conquistados grupos residentes de regiões anteriormente anexadas.
A lógica do processo implicava estabelecimento de sucessivos campos de deportados, sobretudo na Polônia, para os que conseguiam sobreviver à violência da expulsão. Com a invasão da União Soviética, a expectativa era deportar todos esses grupos para os confins da Sibéria. Foi quando o esquema chegou ao limite: depois da batalha de Stalingrado, no começo de 1943, a derrota alemã começou a revelar-se inevitável, e o setor mais fanático da cúpula nazista reagiu, passando a implementar o extermínio em massa, por meio das câmaras de gás, como forma de solução ágil e eficiente para o “problema”.


Reinhard Heydrich não viveu para ver a queda do 3º Reich: foi assassinado aos 38 anos, em junho de 1942, na República Tcheca, onde fora nomeado governador por Hitler. Mesmo fora de Berlim, participava ativamente dos processos decisórios que levaram à “solução final”. Bertold Brecht e Fritz Lang produziram um memorável filme nos EUA sobre o episódio: Os carrascos também morrem, em 1943.


Enfurecidos com a morte de Heydrich, os nazistas executaram milhares de pessoas, inclusive os habitantes do vilarejo de Lídice, onde se esconderam os responsáveis pelo assassinato. O tiro saiu pela culatra: Lídice virou símbolo da barbárie nazista, e em vários países, inclusive no Brasil, cidades foram rebatizadas com esse nome. Irônica e involuntariamente, como salienta o historiador Robert Gerwarth no seu excelente trabalho, Reinhard Heydrich acabou servindo de munição para a guerra de propaganda contra o Eixo.


João Lanari Bo é professor de cinema da Universidade de Brasília (UnB)

 

O CARRASCO DE HITLER
De Robert Gerwarth
Cultrix, 456 páginas, R$ 60

 

Trecho

“Se a percepção popular de Heydrich como o frio ‘administrador da morte’ do Terceiro Reich persistiu praticamente sem contestação no decorrer dos anos, os princípios básicos em que essa imagem se apoia sofreram um meticuloso desgaste nas últimas duas décadas. Hoje está claro que a ideologia desempenhou um papel motivador fundamental para os oficiais veteranos da SS e que qualquer tentativa de tratá-los sumariamente como estranhos patologicamente perturbados é extremamente enganadora. No mínimo, os perpetradores da SS tendiam a ser mais instruídos que o alemão médio ou o europeu ocidental seus contemporâneos. Na maioria das vezes, eram jovens graduados na universidade, socialmente emergentes e ambiciosos, vindos de ambientes familiares perfeitamente íntegros, de modo algum elementos de uma minoria desajustada de extremistas saídos das margens criminosas da sociedade.”

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