Invenção já!

É possível repensar Belo Horizonte, discutir a cidade e ressignificar o espaço urbano

por 10/01/2015 00:13
Sidney lopes/em/d.a press
None (foto: Sidney lopes/em/d.a press )
Walter Sebastião

"A cidade é onde moramos, onde moram nossos amores, nossa família, nossos símbolos, a nossa história e referências. É o território da nossa autoestima e do exercício da cidadania. É o nosso estar no mundo. Por isso, temos sempre que lutar por ela”, afirma o arquiteto Gustavo Penna, que não esconde a tristeza de ver as cidades sofrendo dores crônicas, “com espasmos e tendo de tomar analgésico diariamente”.


Os males urbanos podem ser enfrentados. “Não é utopia”, afirma Gustavo, argumentando que todas as cidades passam atualmente por um processo de ressignificação. Ele lamenta que a soma de egoísmo e ignorância faça com que elite e povo de BH ignorem dilemas e desconfiem de mudanças necessárias.


A área onde se construiu a Pampulha, nos anos 1940, é modesta diante de empreendimentos contemporâneos, ressalta o arquiteto. “Com mais ou menos 10 mil metros quadrados, Juscelino Kubitschek colocou Belo Horizonte no mapa-múndi. Nos tirou da mediocridade, criou relação de orgulho com a cidade e um símbolo de BH. Ninguém entende isso até hoje. Por que não seguimos esse exemplo? Por que até hoje não fizemos novos símbolos? Símbolos do nosso tempo, da nossa existência?”, provoca.


O radicalismo e a desconfiança tanto de quem quer preservar quanto de quem planeja construir fazem com que não exista “uma posição central” capaz de definir regiões que merecem tombamento e áreas para o crescimento, adverte. “Tudo de forma clara, tranquila, explícita, fundamentada”, explica.


Gustavo Penna acaba de lançar o livro Impressões (Bei Editora) em parceria com Beatriz Magalhães e Guilherme Seara. Pequenos textos pontuam fundamentos filosóficos sobre um tema que é a paixão dele: arquitetura.

 

Como você vê a Belo Horizonte de hoje?
Outro dia, fiz uma comparação entre Barcelona e Belo Horizonte. Barcelona é uma cidade medieval cercada de bairros planejados. Belo Horizonte, ao contrário, é uma cidade planejada por Aarão Reis, em 1893, cercada de cidades medievais. O planejamento inicial das ruas ortogonais e avenidas em diagonal foi substituído, do anel da Contorno para fora, pelo crescimento espontâneo. Ruas estreitas, passeios ínfimos são características do Anchieta, Santo Antônio e Serra, estendendo-se a todos os bairros da periferia. O que a cidade construiu depois foi imediatista e sem generosidade. Acho uma maldade. Entendo que a somatória de gentilezas constrói uma cidade gentil, da mesma forma que a somatória de equívocos gera uma cidade estúpida e violenta.

O que é perspectiva e o que é impasse em BH?

Sempre acho possível repensar Belo Horizonte e torná-la harmônica. Ela está em região montanhosa, transição de mata atlântica e cerrado. Uma sucessão de bacias paisagísticas que podem ser trabalhadas uma a uma – e em suas conexões. Seria estimulante descobrir os sistemas de tráfego ideais para essas conexões. Pensá-las como grandes largos que permitem a legibilidade do espaço urbano. Hoje, as interseções de vias urbanas são confusas, parecem macarronada. Os elevados parecem tobogãs e as passarelas, instalações de petróleo. Precisamos dos gestos largos, espaços onde a cidade respire, onde nossos olhos também possam respirar. Belo Horizonte tem jeito, sim. E é preciso ir mostrando isso às pessoas. Temos perdido grandes oportunidades pela falta de informação ou deturpação das propostas positivas. Já vi movimento contra escola, contra escultura do Amilcar de Castro. Coisas belíssimas, carinhosas e inteligentes não foram feitas por resistência profunda à mudança e ao novo.
 
Isso é problema cultural ou político?

O problema cultural gera um problema político. A falta de conhecimento de nossas elites e a inexistência de mecanismos que explicitem as questões da cidade fazem com que tudo se resuma ao critério de quem tem poder. Nem sempre em benefício da cidade que queremos. Por outro lado, se você perguntar ao cidadão comum o que é uma cidade, ele vai dizer: é isso o que está aí mesmo. Dizem isso porque não têm outra ideia de cidade para substituir. Por isso é tão importante trazermos essas questões para as salas de aula, jornais, televisões e redes sociais.

Qual é o problema político?

Acabamos desprezando o planejamento, reduzindo o urbanista à condição de quem dá forma a um processo do qual não participou conceitualmente. Vivemos num universo de processos jurídicos, da submissão aos conselhos públicos, que quase sempre desestimulam a inventividade. É o primado do mau humor, da suspeição, onde todo mundo fala e ninguém se entende. Sou a favor de que voltem os urbanistas e harmonizem as tendências num plano amplo, claro, aberto, humanista. Afinal, quem opera o coração é o cirurgião, quem calcula o prédio, o calculista. E quem planeja a cidade é o urbanista, claro!

Como é fazer arquitetura na cidade sem urbanismo?

Se a cidade não permite que pensemos com a macrovisão, temos que ir pontuando o espaço urbano com exemplos de referência. Pequenos exemplos de gentileza. Uma aqui, outra ali, na esperança de elas terem força para gerar outras gentilezas. Veja o Parque Ecológico da Pampulha. Aquilo era só lixo e entulho, degradava a região. O que fizemos, Álvaro Hardy e eu, até mesmo porque não se tinha dinheiro, foi criar uma modelagem para o terreno. Em vez de pavimentar, de construir muitos edifícios e uma porção de zanga-burrinhos, plantamos grama e árvore, criamos um parque substantivo, onde a criança pode correr sem medo. Essa ideia se replica em toda a Belo Horizonte. No nosso projeto vencedor para o Centro Administrativo, propusemos uma praça coberta de 8 mil metros quadrados para o encontro das pessoas, bem no coração da cidade. Quando vejo o quarteirão fechado da Praça Sete, que projetamos cheio de gente a qualquer hora, acho que se gastou o dinheiro de forma correta. As pessoas gostam de jogar damas ali, de se manifestar. A galeria Praça Sete vira, no fim de semana, uma espécie de praia, com gente tocando música ao ar livre. Gosto disso.

O que é essencial ao projetar algo para a cidade?

Não há como fazer arquitetura sem generosidade no coração. Não podemos pensar em coisas bonitas que não são bem interpretadas pelo usuário. Temos que criar as ferramentas do encontro. Em Belo Horizonte, temos bons motivos para isso: capital da música instrumental, da dança, das artes plásticas, do teatro, da videoarte, da gastronomia, dos milhares e melhores botequins do mundo. Quero a volta da gentileza, as ideias criativas. Uma cidade onde seja prazeroso e seguro caminhar, criar percursos por galerias e espaços de convivência, áreas verdes cheias de vida, os personagens e suas histórias valorizadas. Precisamos urgentemente de arte e invenção.

Como você gostaria que fosse o futuro de BH?

Por mim, estudaria os bairros e as características deles, criando um desenho afetivo de Belo Horizonte, procurando saber, entender como é cada um. Santa Teresa, por exemplo, não é só feita de ruas, edifícios e árvores, mas de pessoas, de histórias, de muitos tempos. Se conseguirmos fazer esse desenho, começamos a valorizar seus símbolos. Gostaria de dar um tratamento para que cada bairro mostrasse o seu jeito específico de ser. Pinçar o essencial e promover o surgimento das centralidades. Centralidade significa uma certa autonomia, ter a chance de trabalhar, morar, ir ao cinema perto de casa. Essa relação pode construir os mecanismos de vizinhança solidária, dividindo a difícil missão de cuidar do que é coletivo.

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