Infâncias no plural

O desenvolvimento da criança deve ser compreendido pelo que ela é -3 e não por faixas etárias ou etapas de crescimento. Teorias preconcebidas e senso comum não são bons conselheiros

por 10/01/2015 00:13
Big baby/ Obra de Ron Mueck/Reuters
None (foto: Big baby/ Obra de Ron Mueck/Reuters)
Marina Marcondes Machado

Para alguns, “infâncias” no plural, em um breve texto escrito para um jornal, poderá causar estranhamento; para outros, já habituados ao que podemos denominar as “culturas da infância”, o plural não só faz muito sentido, como é indispensável. Para iniciar nossa contextualização, visitaremos um campo minoritário, mas potente; minoritário porque, longe das teorias do desenvolvimento infantil, nosso pensamento propõe abertura para a pluralidade dos pontos de vista. Nesse sentido, a “verdade” desenvolvimentista acerca da criança, a saber, o conhecimento das teorias fundadas na psicogênese e na biologia dos corpos categorizados por fases e faixas etárias, é um dos pontos de vista, ou uma noção de infância possível; no entanto, há outras – menos divulgadas, trilhas menos percorridas. Para contemplar o plural, vistaremos o viés filosófico.

Nesta reflexão, comentaremos especialmente a contribuição do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) para pensar a criança e a primeira infância. Poucos sabem que Merleau-Ponty lecionou na Sorbonne a cátedra de psicologia e pedagogia da criança, entre 1949 e 1952. Seu projeto era pensar a infância de modo culturalista, algo que, anos mais tarde, ocorreu de fato, por meio da inauguração de um campo de trabalho: pesquisa e ação da sociologia da infância.

Já na metade do século 20, Merleau-Ponty apontava a necessidade de compreensão da criança a partir de seus mundos de vida, e não a partir de teorias adultas preconcebidas; fez então, em seus cursos na Sorbonne, uma elegante crítica ao desenvolvimentismo, especialmente às ideias de Jean Piaget, bem como à psicanálise de crianças, que florescia naquele momento histórico. Um dos cernes de sua crítica é negar a existência de um “mundo da criança” ou uma “concepção de mundo” advinda de sua psique; para que haja uma concepção de mundo, a criança precisaria estar distanciada, de modo a enxergar “seu mundo” e dizer algo sobre ele; para Merleau-Ponty, o pressuposto desta noção de representacionalidade de si e do mundo constituiu o grande erro da psicologia científica. Não existiria algo como a “mentalidade infantil”.

EGOCENTRISMO O filósofo nos recoloca a questão, afirmando ser a criança mundocentrada, o que desmonta o conceito de egocentrismo e nos ensina que os primeiros anos se dão por meio de um mergulho em um estado não reflexivo, portanto vivencial. Sua noção de infância desestabiliza as teorias projetivas, do brincar ao desenho, da interpretação de discurso aos testes projetivos na prática da psicologia da criança; suas palavras-chave são: onirismo, polimorfismo e não representacionalidade, palavras que delineam o modo de ser e de estar das crianças pequenas.

Haveria um modo de compreender a infância que se conecta com o que a hermenêutica nomeou “via longa”: em uma chave não pragmática, não procuramos explicações, mas antes, compreensões; descrições dos estados e dos modos de ser das crianças, para perscrutar as relações criança-corpo, criança-outro, criança-mundo, criança-tempo, criança-espaço, criança-língua mãe. Essa atitude, observacional e descritiva, delineia uma fenomenologia da criança, inserida em uma perspectiva culturalista e existencial.

Nesse modo de pensar e agir não existe “o bebê” ou “a criança de 1 ano”: existem Paulo, Antônia, Pedro Henrique, Natália… Quem são eles? Como vivem? Como brincam, como não brincam? Como se relacionam consigo mesmos, com os outros e com o mundo compartilhado? São essas as perguntas da chamada via longa, caminho de compreensão da criança e da infância.

O cotidiano revelador desta abordagem é o esvaziamento de expectativas com o desenvolvimento por etapas ou faixas etárias, para, assim, proporcionar, adultos que somos, uma atmosfera relacional na qual a criança possa “ser o que ela é” – mas sem nunca deixá-la à deriva. Isso compactua com o que Winnicott (1896-1971) propôs aos adultos em geral: estar “presente e ausente”, concomitantemente, nas questões da maternagem inicial. A psicanálise inglesa, a partir da contribuição de Winnicott, tem semelhanças e elos com a fenomenologia da criança proposta por Merleau-Ponty; e na atualidade encontramos nos estudiosos da sociologia da infância esse tipo de abordagem compreensiva, para olhar para a criança e a infância a partir da vida mesma.

BRASIL Estudiosos brasileiros pensam e praticam essa aproximação entre a fenomenologia e a psicanálise. José Moura Gonçalves Filho, professor de psicologia da Universidade de São Paulo (USP), é um deles, pesquisador cujo tema de pesquisa é a humilhação social – importante contribuição para pensamento e ação junto aos cidadãos das classes menos favorecidas, conceito que trata da angústia vinculada ao impacto traumático da desigualdade de classes. José Moura é estudioso de Simone Weil (1909-1943) e seu trabalho sempre se orientou pela psicologia social de Ecléa Bosi.

A filosofia continua nos brindando com novos modos de pensar a criança e a infância, na mesma conexão de prescindir de categorizações por faixas etárias, saltos desenvolvimentistas, adequações e inadequações, bem como metas de maturidade. A partir de Gilles Deleuze (1925-1995), por exemplo, pode-se trabalhar com a noção de “devir criança”, e podemos citar no Brasil os professores Walter Omar Kohan e Sílvio Gallo como pesquisadores que trabalham naquela perspectiva.

Walter Kohan, em um de seus textos, aponta erros conceituais, ou riscos, da adesão a olhares para a infância localizados no senso comum: o idealismo ou romantismo frente às crianças, opção que naturaliza a criança e suas capacidades pensantes (dizer simplesmente “a criança é filósofa”, por exemplo); a mercantilização dos campos dos saberes e fazeres (na saúde, na educação, na indústria cultural); e a tendência ao dogmatismo e à moralização que um discurso filosófico que aproxima as crianças pode conter – mesmo que repleto de boas intenções.

FILOSOFIA Kohan publicou inúmeros livros (muitos pela Editora Autêntica, de Belo Horizonte) e um de seus campos de pesquisa acadêmica na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) é o ensino de filosofia para crianças. Já Silvio Gallo trabalha na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e sua abordagem das intersecções entre pedagogia e a filosofia converge para uma assim chamada pedagogia libertária, na busca, segundo o professor, de “uma filosofia anarquista da educação”, em diálogo também com outro importante filósofo francês, Michel Foucault (1926-1984). O papel da educação, do ponto de vista de Gallo e seus pares, está justamente na construção coletiva da liberdade pela denúncia das injustiças e dos sistemas de dominação.

Será portanto longe das teorias majoritárias que o leitor poderá trilhar conosco aquela mesma via longa – reflexiva, minuciosa, focada na criança e na infância (e não no adulto e suas teorias sobre ela) e situada –, pois nunca haveremos de esquecer: da pertença de todos, adultos e crianças, ao mundo vivido; de centrar-nos nas necessidades infantis de fato, aqui e agora; e de revisitar o fluxo cotidiano das relações adulto-criança, especialmente aquelas designadas por “relações de poder”.

Quem são os adultos que convivem com Paulo, Antônia, Pedro Henrique, Natália? Quais suas crenças e dizeres, afazeres e atitudes diante da criança que educam? Mas, afinal, educa-se simplesmente uma criança, ou se é, também, educado por ela, em uma via de mão dupla, asfaltada pela contemporaneidade?

Marina Marcondes Machado é professora-adjunta do curso de teatro e da pós-graduação em artes da cena da Escola de Belas-Artes da Universidade Federal de Minas Gerais

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