Vidas em trânsito

'Cartografias contemporâneas - Espaço, corpo, escrita' mapeia fenômeno da diáspora, do exílio, das diferenças culturais e da identidade a partir da literatura feminina produzida em países periféricos e dos conflitos vividos por seus personagens

por Ângela Faria 08/01/2015 12:30
Morteza Nikoubazl/reuters - 2/4/07
(foto: Morteza Nikoubazl/reuters - 2/4/07)
Sissie deixa Gana e vai estudar na Alemanha. Clare se muda da Jamaica para os Estados Unidos. Nazneen troca Bangladesh pela capital inglesa, enquanto Jasmine deixa a Índia em busca de vida nova nos EUA. Todas elas são personagens de romances escritos a partir dos anos 1970 por autoras de países considerados periféricos, testemunhas de mudanças socioeconômicas e culturais geradas pelo movimento migratório que se tornou marca registrada da sociedade contemporânea.

Em Cartografias contemporâneas – Espaço, corpo, escrita (7Letras), Sandra Regina Goulart Almeida analisa a obra de autoras que retratam o chamado “século do grande experimento imigrante”. Vice-reitora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professora de estudos literários da Faculdade de Letras dessa instituição, a pesquisadora busca oferecer uma reflexão sobre o deslocamento espacial e o trânsito cultural como marcas da contemporaneidade.

“Hoje, mais do que em qualquer outro momento histórico, as pessoas se movem com mais rapidez e mais intensidade por espaços geográficos e geopolíticos. Entre esses movimentos espaciais destacam-se as diásporas contemporâneas, que adquiriram um sentido mais amplo do que o original”, afirma Sandra Almeida. Uma das características dessa nova diáspora é a presença das mulheres, que, além de participar desse movimento, refletem e escrevem sobre ele. “Ao iniciar a pesquisa que deu origem ao livro, queria descobrir sobre o que, de fato, elas escrevem, como esse espaço contemporâneo de trocas culturais é vivenciado por elas e, principalmente, como as questões de gênero aparecem em suas obras”, diz.
Três aspectos marcam fortemente a obra das autoras selecionadas por Sandra: o lar, o corpo feminino e a cidade cosmopolita. Sissie, a protagonista de Our sister Killjoy, de Ama Ata Aidoo – escritora de Gana que viveu nos EUA e voltou ao país de origem –, critica os conterrâneos que estudam na Europa, tornam-se “sem pátria” e, seduzidos pelo Primeiro Mundo, recusam-se a voltar à África para ajudar a construir uma nova sociedade. Em No telephone to heaven, a jamaicana Michele Cliff, que mora nos EUA, conta a história de Clare e sua família. A moça aprende a se “camuflar”, tornando-se “invisível” para se misturar aos norte-americanos com quem convive. Quando se muda para Londres, redescobre a ancestralidade africana e volta à Jamaica para lutar – e morrer.

Personagem criada por Monica Ali, escritora nascida em Bangladesh e radicada na Inglaterra, a bengali Nazneen, protagonista do romance Brick Lane, muda-se para Londres para acompanhar o marido e aprende ali, na cidade cosmopolita, a ser dona do próprio destino. Sustenta a família, rejeita o amante descendente de conterrâneos que vê nela a mulher muçulmana ideal. Nazneen, a adúltera, faz do próprio corpo elemento de transgressão, enquanto outras personagens o transformam em bandeira política. Diante da repressão a islamitas depois dos atentados de 11 de setembro em Nova York, elas trocam o véu hijab pela burca. Completamente cobertas de preto, circulam por ruas europeias, desafiando os ocidentais que demonizam a cultura do islã.

Sandra Almeida analisa também a obra da indiana Bharati Murkherjee, que viveu no Canadá e mora nos EUA. No romance Jasmine, ela conta a história da mulher que se desdobra num “vaivém de identidades”: é Jyoti para sua família pobre na Índia; Jasmine para o marido; Jazzy para a mulher que a acolhe nos EUA; e Jase para a família para quem trabalha em Nova York. Finalmente, assume-se como Jane em sua nova pátria.

SEGUNDA GERAÇÃO Polos cosmopolitas – Nova York, Londres e Roma – são também “personagens” de romances protagonizados por filhos de imigrantes. Sandra Almeida analisa a presença da chamada segunda geração da diáspora na literatura contemporânea. É o caso de Pilar, protagonista de Dreaming in Cuban, de Cristina Garcia, cubana radicada nos EUA; e de Gogol e Moushumi, criados pela indiana Jhumpa Lahiri para o livro The namesake.

Em Terra descansada, publicado no Brasil pela Companhia das Letras, Lahiri conta a história de filhos de indianos criados em Massachusetts, nos EUA, que só conseguem estabelecer um verdadeiro vínculo afetivo em Roma, bem longe de casa e do legado cultural dos pais. A metrópole, lembra Sandra Almeida, oferece excesso, prazer e, por outro lado, isolamento e anonimato – essências do “não lugar”. Justamente esse “não lugar” permite ao casal um verdadeiro encontro, embora fugaz.

Exílio, emigração e diáspora são fenômenos antigos na história da humanidade. Porém, lembra Sandra Almeida, as narrativas contemporâneas destacam atores antes invisíveis ou silenciados, que chamam a atenção para questões inerentemente políticas ao descortinar um mundo no qual sujeitos em trânsito habitam um entrelugar conflituoso, por vezes liberador e produtivo ou, por outras, altamente repressivo e coercivo.

BRASIL O novo livro da professora da UFMG não aborda livros brasileiros. O foco da pesquisa é a descolonização ocorrida nas colônias inglesas, quando houve imigração intensa em direção às antigas metrópoles ou a outras nações do Primeiro Mundo.

No caso brasileiro, observa Sandra Goulart, há especificidades históricas que devem ser tratadas distintamente. Escritores de nosso país tendem a priorizar trânsitos contemporâneos e a imigração que veio para cá. Poucos abordam a emigração do Brasil para o exterior. “Nesse sentido, a reflexão sobre uma possível diáspora brasileira ainda é recente e um tanto incipiente”, explica. Mas cita a antologia publicada pela Mazza Edições em 2013, organizada por Else Vieira, que fala da poesia da diáspora brasileira e de autores que moram no exterior: Alessandra Rebello, Antônio Massa, Natan Barreto, Ricardo Sternberg, Vera Lúcia de Oliveira e Vilmara Bello, entre eles.

“Um exemplo mais conhecido, no campo da ficção, é o do brasileiro Sergio Kokis, que reside no Quebec, Canadá, e escreve romances sobre sua experiência de imigrante, tendo sido nomeado, em mais de uma ocasião, para receber o Governor General's Awards, prestigioso prêmio canadense de literatura”, conclui a autora de Cartografias contemporâneas.

MAIS SOBRE PENSAR