A nova Agenda 21

Cultura é fundamental para o desenvolvimento sustentável no ambiente simbólico das cidades. O setor deve ser reconhecido como elemento referencial para políticas de planejamento urbano

por 20/12/2014 00:13
Leandro Couri/EM/D.A Press - 10/5/14
Leandro Couri/EM/D.A Press - 10/5/14 (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press - 10/5/14)
Leônidas J. Oliveira



Embora seja uma palavra utilizada cotidianamente e numa infinidade de contextos, cultura é conceito consideravelmente amplo, que engloba grupos diversos, momentos diversos e significados diversos. Néstor García Canclini, antropólogo argentino, nos traz uma das possíveis definições de cultura como sendo um conjunto de fenômenos que contribuem para compreender, reproduzir ou transformar o sistema social. Hebert Marcuse, filófoso alemão, identificou, durante o século 20, a cultura como os objetivos e valores estéticos, morais e intelectuais de uma sociedade, relacionando-a a uma dimensão superior, da autonomia e da realização humana. Walter Benjamin, alemão de família judia, ponderou que a cultura, assim como determinada forma de arte, não pode ser pensada se levarmos em conta a concepção da história e da sociedade, que a ela atribuem valor.

Assim, como bem analisou o inglês E. P. Thompson, a cultura não carrega consenso. E é exatamente por não carregar consenso, por exprimir diversos modos de vida e expressar diversas percepções sobre a realidade que a cultura – ou as culturas – exige contínuo diálogo com o outro; incessante compreensão dos valores e dos significados que costumes, tradições, crenças e espaços representam para pessoas, grupos e sociedades.

Com esse entendimento, é indubitável afirmarmos que a cultura dialoga com todos os campos da vida, perpassando práticas e experiências, agindo potencialmente como transformadora da vida humana. Por meio da cultura os indivíduos se reconhecem, identificam-se, expressam-se e se aproximam de outros, ampliam suas liberdades e se desenvolvem como seres humanos autônomos, mas ligados a uma rede de conexões e de solidariedade.

Para que esse desenvolvimento se viabilize é necessário avançarmos no que diz respeito aos direitos culturais em suas múltiplas dimensões: o direito à livre participação e mobilidade na vida cultural, à criação, à fruição, à diversidade, à memória, ao reconhecimento e à preservação da história dos diversos grupos que compõem a sociedade.

A cultura, pilar de grandes civilizações e impérios, está intimamente ligada à perenidade de qualquer espaço compartilhado, sendo impossível, portanto, pensar em desenvolvimento sustentável dissociado dela. Preservar a diversidade cultural, por meio da preservação da memória e dos símbolos nos quais ela se ancora, é fator determinante, pois só assim garantiremos que os indivíduos sejam capazes de criar identidades e estabelecer o sentimento de pertença.

O símbolo, entendido em sua essência originária, é o primeiro elemento a expressar conjunção entre duas realidades, a fazer lembrar e a estabelecer o sentimento de integração. Media, então, o outro a nós mesmos, o individual ao coletivo, a cidade a seus habitantes. O símbolo é elemento essencial no processo da comunicação, encontrando-se difundido pelo cotidiano e pelas mais variadas vertentes do saber humano.

Embora existam símbolos reconhecidos internacionalmente, outros são compreendidos apenas no âmbito de determinado contexto social, cultural, religioso ou territorial. Ruas, praças, escolas, cultos, festas, sabores, aromas, palavras, imagens e sons exemplificam essa pluralidade de símbolos que conformam nossa memória e nos fazem reconhecê-los, reconhecendo-nos no espaço e no tempo. Os símbolos, portanto, atribuem sentido aos lugares, aos territórios e às culturas. Ligam-nos a diferentes gerações, nos fazem sentir pertencentes a um todo, a uma coletividade. Tornam a cidade mais próxima, mais habitável, mais familiar.

PATRIMÔNIO

Dentro desta premissa, proteger nosso patrimônio se torna fundamental. Auxiliando-nos num melhor posicionamento frente ao mundo atual, carregado de fragmentos de valores, lugares e pessoas, a identificação do que é o patrimônio cultural possibilita ao coletivo encontrar pontos de convivência diante de territórios urbanos continuamente disputados, visando a uma apropriação para usos sociais diferentes e até mesmo conflitantes. Ao reduzir os usos dos espaços ao valor de troca, acirramos os conflitos entre os grupos que a eles atribuem valores e significados diferentes, desconsiderando suas apropriações e vínculos e mesmo vocações históricas, socialmente estabelecidas pelo uso coletivo. A mercantilização do espaço pode gerar erosão na memória social, além de criar uma cidade menos inclusiva.

Por esse motivo, aliar o desenvolvimento das sociedades ao crescimento das cidades e à preservação plural da memória e das culturas que aí se manifestavam e se (re)constroem é tarefa árdua, porém, imperiosa. A sustentabilidade, nesse contexto, torna-se o termo referencial, pois busca criar conexões entre todos esses fatores, viabilizando a promoção e a preservação da memória social, seja individual ou coletiva. A memória nos possibilita a conexão com o passado, auxiliando a compreensão do presente que vivemos. Mediada pelos símbolos constituídos pelas pessoas, pelos grupos, pela sociedade e pela cidade, tentamos evitar o esquecimento dos testemunhos de nossos antecessores e da nossa própria vivência.

Para o sociólogo francês Maurice Halbwachs, mesmo as memórias individuais são fruto da memória coletiva, uma vez que sua formação se dá no interior de determinado grupo, compartilhando pontos de referência em comum. Todavia, a memória coletiva deve considerar exatamente a coletividade, abarcando os mais diversos referenciais de histórias e experiências, atuando na libertação e não na servidão dos homens, como bem colocado pelo historiador francês Jacques Le Goff.

Nesse sentido, a identificação, valorização e proteção dos símbolos também contribuem para a cultura de paz. Afinal, por meio deles sentimo-nos mais próximos uns dos outros, reconhecemo-nos como participantes de uma mesma história, compartilhando memórias semelhantes, diminuindo os estranhamentos e vivenciando a alteridade. Reforçamos a coesão social e nos tornamos mais humanos, dispondo de maior competência intercultural.

A cultura e os símbolos são, portanto, capazes também de criar um sentimento de identidade e reciprocidade entre comunidades que não necessariamente ocupam o mesmo território físico. Perto e longe se tornam, em termos culturais, conceitos relativos. Por intermédio da cultura, em sua dimensão mais ampla, constituem-se comunidades espacialmente separadas, mas com força simbólica suficiente para constituir identidades coletivas. Como exemplo, temos espalhadas por todo o país e pelo mundo as comunidades religiosas, as comunidades de esportistas, as comunidades de lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, intersexuais e simpatizantes (LGBTIS) e as comunidades político-partidárias, entre outras.

FRONTEIRA

Assim, os habitantes de uma cidade, por meio do deslocamento e do uso de espaços comuns, vão construindo fronteiras simbólicas que separam, hierarquizam ou ordenam as categorias e grupos sociais. Nessas “zonas de contato” das grandes cidades se entrecruzam moralidades contraditórias, indivíduos de mundos diferentes, que, ao compartilhar o mesmo espaço, se aproximam. Dessa forma, o território urbano é dinâmico e adquire novos significados a cada dia.

Em Belo Horizonte, por exemplo, observamos o fenômeno das diversas ocupações culturais acentuadas nos últimos anos e que atribuem maior sentido aos lugares: Praça da Estação, Viaduto de Santa Tereza, Quarteirão do Soul, Virada Cultural, Festival Internacional de Teatro Palco e Rua de BH (FIT), apenas para citar alguns. Elas representam vivências da arte de uma área geográfica da urbe, podendo expandir sua territorialidade para além das fronteiras fixas. Capazes ainda de oferecer reflexões sobre a nossa forma de perceber e viver a cidade, algumas são, às vezes, mal entendidas e mal interpretadas por alguns segmentos da sociedade e pelo poder público. Portanto, é preciso prestar atenção aos símbolos, aos ritos e às vidas que pululam na cidade para entender o que significam.

Igualmente, é preciso fazer da cultura elemento referencial para as políticas de planejamento urbano. Afinal, alterar o espaço público é muito mais que mudar o sentido do trânsito ou relocar mobiliários urbanos, inaugurar praças ou edifícios. É também alterar os sentidos e as formas de apropriação dos lugares. É fortalecer ou desconsiderar símbolos, memórias, identidades, diversidades. É, em suma, planejar uma cidade onde caibam todos, respeitando o princípio fundamental da Agenda 21 da Cultura, que considera a diversidade cultural como principal patrimônio da humanidade e um dos elementos essenciais de transformação da realidade urbana e social.

. Leônidas J. Oliveira é presidente da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte

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