Carlos Niquini lança 'Tempo de colheita'

Livro, que será lançado neste sábado na Scriptum, revela experiência do autor ao caminhar 800 quilômetros até Santiago de Compostela

por Ângela Faria 20/12/2014 00:13
Fotos: Carlos Niquini/divulgação
(foto: Fotos: Carlos Niquini/divulgação)
“Transeuntes eternos por nós mesmos,/ não há paisagem senão o que somos”, escreveu Fernando Pessoa. Sábio companheiro de viagem, o poeta dá régua e compasso a Carlos Niquini, que dedicou 31 dias de um outono europeu para cruzar o Caminho de Santiago. Em 29 de setembro de 2013, o empresário mineiro partiu da cidade francesa de Saint-Jean-Pied-de-Port para chegar à espanhola Santiago de Compostela em 30 de outubro. Não foram 800 quilômetros de distância, mas de descobertas.

Aos 57 anos, confessadamente apavorado com a perspectiva de esperar a morte chegar, Niquini deu uma de Raul Seixas. O empresário virou as costas para o trono burguês, comprou botas e mochila e “rachou” para o aeroporto de Confins. Agora, ele conta sua saga no livro Tempo de colheita, que será lançado hoje na Livraria Scriptum, em BH.

Carlos Niquini desembarcou em Madri, sentiu-se um tiozão meio ridículo dando uma de mochileiro no metrô e pôs os pés em Pamplona em momento especial: o dia da famosa corrida de touros – tradição espanhola que remete à vida e à morte. No quarto de hotel, em frente ao espelho, caiu a ficha: “Oitocentos quilômetros? Agora aguenta!”. E lá se foi ele, de ônibus, rumo a Saint-Jean-Pied-de-Port.

Tempo de colheita mais parece bate-papo num desses botecos simpáticos do interior de Minas. Assunto: gente. É o caso dos dois rapazes que ressurgiram de surpresa na cidade de Melide, carregando um bolo para o autor, que comemorava 58 anos. Contando os tostões, o brasileiro Douglas e o português Sebastião chegaram a Santiago de Compostela, o fim da rota. Mesmo assim, voltaram 60 quilômetros para trás só para celebrar o aniversário do amigo, com quem iniciaram a aventura, no interior da França.

Niquini, de certa forma, desglamouriza o ti-ti-ti em torno do caminho. Topou com gente chata, toureou ladrõezinhos oportunistas de olho na mochila alheia, teve roupas roubadas no albergue. Rolou estresse, mas também comunhão. Ao ver uma garota americana aos prantos, lá se foi o mineiro – bom filho de Jequeri – comprar uma barra de chocolate para animar a moça. Depois, ele conheceu a paulista Ana, que cumpria, solitariamente, a jornada de bicicleta e teve de enfrentar assédio sexual, entre outros perrengues.

O Caminho de Santiago, por outro lado, não deixa de ser mágico, sobretudo neste mundo tão egoísta. Espanhóis simpáticos mimam peregrinos com maçãs, boa comida e solidariedade – foi assim que o nosso turista aprendiz recuperou a imagem de São José de Botas, herdada do pai, esquecida num albergue em Villamayor de Monjardin.

Tempo de colheita não é daqueles livros chatinhos cheios de relatos edulcorados sobre revelações transcendentais. Niquini tem seus momentos autoajuda, coerentes com uma jornada espiritual, comete alguns poemas, mas acerta ao concentrar seu diário no mundão, carregando São José de Botas, poucas mudas de roupa e uma pedra ouro-pretana pela estrada afora. O destino desse talismã mineral é ficar aos pés da cruz de ferro, na Galícia, onde peregrinos depositam símbolos de suas descobertas.



SEM TÁXI

Niquini toma chuva, mas se recusa a dar uma de burguesão, mandando a bagagem de táxi para a próxima parada. Não se hospedou em quartos para endinheirados. Compartilhou maçãs, água, chocolate e apertos. O segredo é aprender a carregar o peso e curar as bolhas nos pés.

O roteiro passa por culpa, medo, desapego, chuva, sol, frio, calor, estrelas, macieiras, paisagens deslumbrantes e um pit stop na cidade de Burgos, cheia de galpões, fábricas e hordas de turistas. O peregrino estranhou, a princípio, o porquê da parada urbanoide. Coube ao pernambucano Paulão explicar: é preciso também pôr os pés na realidade.

Nessa toada, Niquini vai descobrindo suas limitações, inclusive físicas, apelando a anti-inflamatórios, chorando e se sentindo feliz. Sobretudo diante do céu espanhol. E toma de Carlos Pena Filho um soneto emprestado para “aprisionar no azul as coisas gratas”.

GUIAS

É outubro na Europa e Carlos Niquini celebra seu próprio outono. De volta a Minas, depois de cumprir o Caminho de Santiago, Niquini escreve. Tem como guia não o “expert” Paulo Coelho, mas versos de Manuel Bandeira, Gregório de Matos, Carlos Pena Filho, Almir Sater e Fernando Pessoa.

“Já não posso, de modo algum, retornar àquilo que, com tanto sofrimento, acabo de deixar, assim como o pássaro que voou uma vez já não pode entrar na casca do ovo de onde saiu”, escreve Tolstói na introdução ao 31º capítulo de Tempo de colheita. “Rompi a casca do ovo”, comemora o peregrino.

Sim, vale a pena – mas só se a alma não for pequena.

TEMPO DE COLHEITA
. De Carlos Niquini
. Palco Editora, 207 páginas, R$ 48
. Lançamento hoje, às 11h30, na Livraria Scriptum, Rua Fernandes Tourinho, 99, Savassi

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