A vertigem CHINESA

Livro organizado por Jean-Michel Frodon e Walter Salles apresenta entrevistas de Jia Zhangke, considerado um dos mais importantes cineastas da atualidade

por 20/12/2014 00:13
Loic Venance/AFP
Loic Venance/AFP (foto: Loic Venance/AFP)
João Lanari Bo



Vivemos numa época em que, para muitos, um produto “made in China” confunde-se com a própria noção de consumo. A espetacular ascensão econômica e social da China nas últimas décadas fascina e inquieta – é o tigre que se levanta, o “império do meio” (Zhongguo, como os chineses nomeiam seu país) que volta a ocupar o centro do mundo. Mas o que sabemos desse rolo compressor que se anuncia no horizonte? Remova os clichês, focalize objetivamente – não sabemos quase nada. O cinema de Jia Zhangke pode ser uma abertura, um foco, para usar metáfora fotográfica, que permite um desvelar desse mundo complexo e enigmático. Aos filmes, acrescente-se agora para o leitor brasileiro a rápida publicação da Cosac Naify, O mundo de Jia Zhangke, organizada por Jean-Michel Frodon e Walter Salles, recheada de entrevistas e depoimentos do diretor e colaboradores próximos.

Walter Salles considera que Jia “se tornou, para um número crescente de amantes do cinema, o cineasta mais importante do seu tempo”. Não é pouca coisa. Nascido em 1970, em uma modesta cidade da província de Shanxi, o diretor foi e continua sendo testemunha ocular de um radical processo histórico: a emergência da China moderna, pós-revolução cultural de Mao Tsé-Tung, fruto das reformas econômicas capitaneadas por Deng Xiaoping.

Sua vida foi pautada por estas turbulências: penúria e retraimento nos tempos maoístas, opulência e desigualdade crescente no refluxo da maré socialista. O modelo chinês combinou autoritarismo de partido único com abertura para o capital estrangeiro, sobretudo da diáspora chinesa, gerando uma espécie de capitalismo de Estado mais ou menos predatório, com forte presença de empresas estatais e infinitas oportunidades para antenados e desavisados.

Jia Zhangke, um dos observadores privilegiados dessa transição, construiu uma linguagem cinematográfica que capta essa brecha histórica com maestria singular, sugerindo para o espectador, sobretudo o ocidental, a densidade de desejos e aflições, absolutamente reconhecíveis e triviais, mas não menos intensos e comoventes, que afeta os chineses.

Como isso foi possível? Afinal, estamos falando da China, nação de escalas humanas e físicas que desafiam a combalida razão cartesiana. Qualquer projeto de síntese estética num cenário hiperbolicamente complexo como esse é uma aposta dificílima. Jia mal concluía seus estudos de cinema em Pequim quando realiza seu primeiro filme, Xiao Shan volta para casa, em 1995, com quase uma hora de duração, sobre um cozinheiro desempregado perambulando na capital com ganas de voltar para seu vilarejo natal.

Uma leitura rápida classificaria o enredo de banal, insignificante. Ledo engano: migrações internas, do campo para a cidade, eram e ainda são parcialmente um tabu de proporções apocalípticas na China. O filme de Jia (disponível para visualização em www.derives.tv/xiao-shan-rentre-a-la-maison) tocou num nervo sensível do aparato chinês, a mobilidade interna da população. O crescimento da renda e o ritmo alucinado dos empreendimentos, em particular os imobiliários turbinados pelos magnatas de Hong Kong, forçou inevitavelmente uma acomodação pragmática das autoridades em relação a esses deslocamentos. O monitoramento do governo, não obstante, continua indispensável para a manutenção da “paz social”. Desnecessário sublinhar que o filme de Jia não foi exibido em seu país, a exemplo dos seguintes – só em 2004, depois de longas negociações com a censura, o diretor conseguiu alguma circulação na China para seus filmes.

O reconhecimento artístico, com o financiamento para novas produções, veio de fora do país natal. Jia ganhou prêmios em festivais asiáticos, juntou-se a técnicos e produtores de Hong Kong e Japão, e entrou para o primeiro time dos realizadores ao faturar o Leão de Ouro no Festival de Veneza, em 2006, com o magnífico Em busca da vida. Neste, o espaço em si mesmo é um dos protagonistas. Rodado na Vila de Fengjie, no Rio Yangtze, o filme narra a busca de duas pessoas, homem e mulher, pelos seus respectivos parceiros.

De novo um enredo aparentemente simplório – o pano de fundo, porém, é a progressiva destruição da pequena cidade em função da inundação provocada pela represa de Três Gargantas, ícone do desenvolvimentismo chinês, a maior hidrelétrica do mundo. Uma vertigem de transformação material que se interioriza nos personagens – aguçada pelo contraste entre rapidez das mudanças econômicas e sociais na China contemporânea e a opção de Jia por planos longos e calmos, como se a reflexão interior só fosse possível à beira do abismo. 24 City, um (falso) documentário realizado em 2008, devassa o fim de uma fábrica estatal de jatos Mig, localizada no Centro de Chengdu, capital da província de Sichuan – conhecida, na curta e seca nomenclatura socialista, como Fábrica 420 – em favor de um megaempreendimento imobiliário, incluindo shopping centers, lazer, residências... tudo aquilo, enfim, que reza a cartilha da meteórica escalada chinesa da modernidade.

Jia Zhangke, a despeito do sucesso internacional, ainda é pouco conhecido no Brasil – seu último filme, Toque de pecado, obteve relativa e inédita acolhida em nossos cinemas. O livro que a Cosac Naify acaba de publicar é uma excelente introdução ao universo de um diretor atento à vertiginosa transformação de seu país, tão longe e tão perto de nossa realidade imediata.

. João Lanari Bo é professor de cinema da UnB


O MUNDO DE JIA ZHANGKE
. Org: Jean-Michel Frodon e Walter Salles
. Cosac Naify
. 320 páginas. R$ 59,90

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