Cíntia, de 26 anos, é um caso emblemático de grave impasse social

Direitos das gestantes usuárias de drogas representam um desafio para o Judiciário e para serviços de saúde

por Oscar Cirino 20/12/2014 00:13
Paulo Whitaker/Reuters
(foto: Paulo Whitaker/Reuters)

A Carta de Belo Horizonte, fruto do 2º Seminário da Frente Mineira sobre Drogas e Direitos Humanos, datada de 10 de outubro deste ano, repudia a Recomendação 26/2014 da 23ª Promotoria Cível da Infância e Juventude de Belo Horizonte, que sugere a notificação compulsória dos casos de gestantes usuárias de drogas. Essa recomendação, segundo a carta, favorece a adoção de práticas de violação de direitos humanos e endossa o sequestro do direito à maternidade.

Em intervenção no 2º Fórum Intersetorial sobre Drogas na Infância e Adolescência, promovido pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) no final de 2013, o defensor público paulista Flávio Frasseto confessou como é difícil tomar posição em situações como esta: definir, em curto período de tempo, se a criança pode ou não sair depois do parto com a mãe gestante usuária de droga, uma vez que, em algumas ocasiões, verifica-se a ocorrência de comércio dos bebês.

Colegas da Maternidade Odete Valadares, em Belo Horizonte, enfatizam a gravidade da questão. É grande o número de mulheres com várias gestações que não ficam com a guarda de nenhum dos filhos. O hospital adota duas formas de atenção a essas usuárias: uma no pré-natal e a outra na internação, já no momento do parto. Constata-se, nos casos em que as gestantes frequentam o pré-natal, que é possível realizar um trabalho de redução de danos e de mudança subjetiva a partir da ocorrência da gravidez. Quando a gestante comparece apenas no momento de um parto de risco, esse trabalho é praticamente impossível.

Sabemos que, quando uma mulher – especialmente adolescente – procura um centro de saúde e diz que está grávida e usa alguma droga, quase sempre escuta dos profissionais: “Você é irresponsável e está matando seu filho”. Tal enunciação contribui para que ela se distancie do serviço de saúde e não faça o pré-natal.

A LOURA DA PISTA

Em 2014, Cíntia, de 26 anos, ensino médio completo, procura o Centro Mineiro de Toxicomania (CMT) pela segunda vez. Na primeira, em 2010, aos 22, só compareceu a uma entrevista. Nessa época, consumia diariamente 10 pedras de crack. Histórico de emagrecimento de mais de 20kg no intervalo de um ano – período em que começou a usar crack com o pai de seus filhos –, além do relato de tosse com escarro de sangue e episódios de vômito.

Há seis meses, por sugestão do Conselho Tutelar, a guarda de seu filho, de 4, e da filha, de 1, estava com a mãe dela. Cíntia passava a noite fora de casa e dormia durante o dia. A mãe, que a acompanhava, diz que a filha estava muito agressiva, quebrava coisas em casa ou as trocava por crack. Chegou a praticar atos de violência física contra o filho, quando ele tinha 3 anos, fato que ganhou repercussão pública por meio da mídia. Cabe destacar: de acordo com levantamento realizado em 2012 nos registros dos conselhos tutelares de São Paulo, a mãe aparece como a principal agressora no ambiente doméstico.

Impulsiva, Cíntia havia tentado desferir uma facada na mãe. Sofreu tentativa de estupro, reagiu e fraturou o braço. Tinha muitos conflitos no bairro onde morava e, pelo fato de o companheiro estar ameaçado de morte, essa ameaça também a assombrava.

A mãe informou que Cíntia, dos 5 aos 13 anos, fez tratamento em uma instituição pública de saúde mental por crises convulsivas, comportamento impulsivo e depressão depois de o pai abandonar a família.

Quatro anos depois, Cíntia retorna ao CMT com encaminhamento da Defensoria Pública. Seu bebê de um mês estava na Santa Casa. O juiz determinou: se ela não se tratasse, o filho iria para um abrigo. Veio novamente acompanhada pela mãe e pela sogra, que também trouxe o pai do bebê para tratamento.

Nesse intervalo de quatro anos ela pariu outros dois filhos com o pai dos dois primeiros. Sua mãe tinha a guarda de três garotos e outro, de 2, estava abrigado. Ressalte-se que Cíntia teve os dois primeiros bebês sem ser usuária de crack. Ela estava há seis dias sem fumar crack, engordara alguns quilos. “Não sou mais compulsiva. Crack não é mais prioridade na minha vida, só quando tenho alguma decepção ou raiva é que uso”, afirmou ela.

Cíntia veio ao CMT tentar conseguir a guarda do bebê – não para ela, mas para a sogra, pois assim poderia ficar mais perto dele. É frequente ao tratamento, ainda que com algumas ausências, as quais justifica pela falta de dinheiro para a condução. Mas telefona para remarcar as entrevistas. Sempre solicita declarações de comparecimento para levar à Defensoria, a fim de poder visitar o filho no abrigo. Pedido aceito sem qualquer questionamento, visando não dar consistência a esse aspecto formal, deslocando-se a importância para o que teria a dizer.

A paciente comparece sempre bem vestida, evidenciando muita vaidade. Preocupa-se com o peso. Seu corpo marca presença. Perguntada sobre a diferença do afeto pelo bebê em relação aos outros filhos, diz: “Estou em um momento diferente, o pai quer a criança, coisa que não acontecia com o pai dos meus outros filhos”. É um modo de Cíntia dizer que o desejo é o desejo do Outro.

Seu pai, um espanhol, deixou a família quando ela tinha 5 anos. No contexto do romance familiar, a moça estabelece comparação com a irmã: “Ela é o anjo; eu o demônio”. A frequência a igrejas evangélicas se manifesta em seu discurso. Acha que Deus fez um milagre em sua vida: “Sou evangélica”. Pintou o cabelo com cor escura e deixou de ser a “loura da pista”.

“Agora, mereço respeito e consideração, não sou mais drogada. Antes, era a mais falada, a loura da pista. Agora volto a ter a aparência de modelo”, revela Cíntia. Sua enunciação e o novo visual são valorizados, pois apontam para a possibilidade de outra identificação e de outra forma de gozo.

A moça menciona histórias de ex-colegas de crack assassinados, como forma de dizer que não quer isso para ela. Recusa convites, mesmo o de um enfermeiro com quem costumava sair e portava 15 gramas de pedra. “Suei, tremi, mas resisti”, revela. Por quê? “Por meus dois filhos que estão no abrigo”, diz, referindo-se ao bebê e ao outro garoto, de 2.

Recentemente, Cíntia comparece ao CMT com aparência bastante abatida, deprimida. Alega ter feito de tudo para vir e que precisa muito falar: “Só aqui me permito chorar e dizer certas coisas”. Teve uma recaída, que relaciona ao fato de o juiz ainda não ter concedido a guarda do seu bebê para a tia e também porque ele decidiu pela adoção de seu filho de 2 anos por um “casal de veados”. Enfatiza, no entanto, que permaneceu apenas dois dias na rua, sendo que antes ficava duas semanas. Passa a considerar que de nada adiantou não ter usado droga por três meses. Elabora que a perda do filho de 2 anos – “nunca mais vou vê-lo” – mobilizou sua tristeza. “Deus me deu cinco filhos e não três. Não posso ver uma mãe com criança no colo que me emociono”, desabafa. E enuncia sua decisão: agendou a laqueadura para as próximas semanas.

MATERNIDADE


Muitas crianças nascem como filhos do gozo e não do desejo, como parece ter sido o caso dos primeiros filhos de Cíntia. Muitas vezes, perpetua-se uma tradição perversa, datada da época do descobrimento do Brasil, quando os portugueses engravidavam as índias. Engravidou? Deixa nascer. Nasceu? O que tenho a ver com isso?.

A maternidade começa com um ato de reconhecimento, que determina o futuro da mãe e do filho. Ninguém ensina a ser mãe. Sabemos ainda que para o falasser não há remédio sem laço social. O falasser, tradução do neologismo lacaniano parlêtre, remete-nos à fala, ao falo, ao ser e ao falecer. O ser falante já nasce destinado à fala, ao sexo e à morte.

Retomo um fragmento do livro Carta ao filho, escrito por Betty Milan, analisante de Lacan e tradutora da versão brasileira de seu primeiro Seminário: “Assim, você me telefonou da Índia, pois vomitava sem parar. Havia emagrecido muito. Contive o choro. Disse não ao desespero e te ouvi, já me perguntando como ajudar. Concluí, no ato, que precisava transmitir confiança na sua recuperação e fazer você contar consigo mesmo. Meu único recurso era esse. Respirei fundo, disse o que precisava dizer e me acalmei. Tenho certeza de que outras mães fizeram o mesmo. Souberam não se desesperar para o filho viver. Dissimularam o medo para encorajar. Ser mãe talvez seja a arte de dar o que a gente não tem”.

. Oscar Cirino é psicanalista

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