Em nome da liberdade

Livro do pesquisador Fernando Marques, Com os séculos nos olhos analisa o teatro feito no Brasil durante os anos 1960 e 1970, a partir da inspiração política e da filiação estética

por 13/12/2014 00:13
Flávio Patrocínio/Divulgação
Flávio Patrocínio/Divulgação (foto: Flávio Patrocínio/Divulgação )
Carolina Braga

Uma tradição errática e irregular. Fontes populares misturadas às formas cultas. Estruturas épicas associadas às dramáticas e, acima de tudo, um olhar atento às circunstâncias políticas. Estes são alguns traços que marcaram a produção teatral do Brasil nos anos 1960 e 1970. São alguns dos temas estudados no livro Com os séculos nos olhos – Teatro musical e político no Brasil nos anos 1960 e 1970, do professor, pesquisador e jornalista Fernando Marques, que está sendo lançado pela Editora Perspectiva.


A obra analisa detidamente, ao longo de 350 páginas, a produção desse gênero no país durante as duas décadas. Foi o período em que peças e espetáculos, assim como outras manifestações culturais, acompanharam reflexões político-estéticas vigentes. Se de um lado cumpre um importante papel de registro histórico, Com os séculos nos olhos avança no sentido de propor uma compreensão estética sobre influências teóricas daquela produção.


Na época em que Ópera do malandro (1978) ganhava os palcos, Fernando Marques era um jovem estudante, com olhar atento ao que se produzia nos palcos. Experimentou a dramaturgia, formou-se jornalista e hoje é também professor do Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília (UnB). Pesquisou Nelson Rodrigues para o mestrado e na hora do doutorado percebeu ser o momento de dar uma face teórica a um interesse que também é prático.


O título do livro é referência a uma das falas do personagem Espártaco, de Brasil – Versão brasileira, de Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974). Vianninha, inclusive, é figura-chave no percurso histórico apresentado no primeiro capítulo do livro. A atuação do dramaturgo no Teatro de Arena, grupo fundado em São Paulo em 1953, abre caminho para a apresentação do panorama daquela época.
Apesar de citar a importância histórica de Eles não usam black-tie, texto de Gianfrancesco Guarnieri, a produção do Arena não entrou no escopo detalhado do estudo. Como a peça não é um musical, A mais-valia vai acabar, seu Edgar, comédia musical escrita por Vianninha e dirigida por Chico de Assis, e Revolução na América do Sul, também da dupla, são tratadas como chave na “demarcação da fase ou tendência distinta no interior do teatro de índole política que se praticou no Brasil a partir de 1950”.


O percurso histórico inclui informações sobre as dissidências no Arena, o surgimento do Centro Popular de Cultura (CPC) e a participação de intelectuais como Ferreira Gullar, entre outros, no movimento.

Ideias estéticas Na segunda parte do livro, Fernando Marques se dedica a compreender esteticamente aquela produção. É o momento em que se aproxima das ideias do dramaturgo Bertolt Brecht (Pequeno órganon para o teatro, 1948) e do pensador húngaro Georgy Lukács (Introdução a uma estética marxista, 1956), relacionando-as com escritos de Augusto Boal e Ferreira Gullar.
“A dramaturgia crítica formulada por Brecht viria a inspirar os musicais brasileiros no período. A forma do musical foi frequentemente a configuração predileta na tentativa de se estabelecer um teatro popular e político”, afirma o autor. De acordo com Fernando Marques, as obras lançadas no período, entre 1964 e 1979, não foram compostas visando plateias. O objetivo era “integrar-se no instante histórico, dele participar e, no horizonte da utopia, contribuir para mudá-lo”.


Assim, são considerados marcos da dramaturgia nacional do período os espetáculos Opinião; Liberdade, liberdade; Arena conta Zumbi; Morte e vida severina; Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come; Arena conta Tiradentes; O rei da vela; Roda viva; Dr. Getúlio, sua vida e sua glória; Calabar; Gota d’água; As folias do látex; Ópera do malandro; O rei de Ramos; e Vargas.
A partir deste conjunto de obras, o autor divide a análise em quatro famílias estéticas: o texto-colagem; o texto diretamente baseado em fontes populares; a peça épica de matriz brechtiana; e a comédia musical. Em todos os segmentos, Marques observa forte influência do teatro épico, defendido por Brecht.


Por uma decisão do pesquisador, a análise no capítulo final se concentra em nove peças, escolhidas do grupo anterior. A partir do estudo, ele afirma que toda a produção dessa fase se distinguiu por uma pesquisa das fontes populares. “As convenções teatrais da farsa e da revista; o verso de sete sílabas do cordel; os gêneros da música popular; o bumba meu boi; o mamulengo e o carnaval foram mobilizados por artistas majoritariamente oriundos da classe média para compor um teatro que se pretendia representativo da nacionalidade e, portanto, segundo se imaginava, apto a falar de seus problemas”, analisa.

Surpresas No caso de pesquisas envolvendo memória teatral no Brasil, é importante salientar o quanto a paixão pelo tema faz diferença. Como Fernando Marques conta, a escassez de material de estudo é absurda. Para a análise pormenorizada das peças escolhidas, muitas vezes precisou se ater ao conteúdo publicado. “Tive que me contentar apenas com as letras e as indicações que induzem imaginar que música será aquela”, lembra.


Ao longo do processo, o pesquisador se deparou com algumas surpresas, como a publicação da caixa completa com a obra da cantora Nara Leão. Estão nela, por exemplo, alguns registros de apresentações do Teatro Opinião. “Saiu em compacto em 1966 e ela gravou só A canção do bicho. Essa ausência de documentação foi algo que frequentemente tive que suprir com a imaginação, lastreada nas indicações presentes no texto”, diz.


Outra situação singular se deu em relação a Se correr o bicho pega, e se ficar o bicho come, de Oduvaldo Vianna Filho e Ferreira Gullar. “Por sorte, tive acesso a dois exemplares em sebos. Essa obra nunca foi republicada”, afirma Fernando Marques. Como o autor ressalta, por mais que existam iniciativas isoladas de recuperação de memória, há muitas lacunas. “Atribuo isso às famílias e aos próprios artistas, que não se interessam pela preservação”, protesta.


Para Fernando Marques, essa ausência de registro acaba interferindo na história recente do gênero. Se vivemos hoje um renascimento dos musicais, a falta de memória faz com que este revival surja totalmente desarticulado em relação à história brasileira. “Não abordo isso no livro, porque não era o foco e ficaria superficial. Mas é o caso de constatar que o musical de hoje não se relaciona como deveria com o passado”, critica.

 

COM OS SÉCULOS NOS OLHOS – TEATRO MUSICAL E POLÍTICO NO BRASIL NOS ANOS 1960 E 1970
De Fernando Marques
Editora Perspectiva, 350 páginas, R$ 60

 

Trechos

“O CPC, ainda que não tenha alcançado o objetivo de levar informação política às classes populares, de fato incomodava os poderosos da época – assim como a UNE, a que se vinculava: um dos primeiros atos da ditadura foi, como já se disse, o de atacar o prédio da entidade estudantil, no Bairro do Flamengo, no Rio de Janeiro, onde funcionava o CPC. Os jovens paramilitares do Comando de Caça aos Comunistas, que agiam sob as vistas grossas do governador Carlos Lacerda, não apenas queimaram o prédio como distribuíram rajadas de metralhadora que podiam ter matado, por exemplo, o compositor Carlos Lyra ou o dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, entrincheirados no local.”

“Opinião deflagra o desejo e reforça o propósito de se falar das questões sociais sob a forma do teatro musical, ainda que seu modelo singular não tenha sido o único, nem o mais utilizado pelas obras que dela descendem. Essa filiação, de que Opinião é matriz, se faz menos a partir de seus achados formais específicos do que a partir de seu espírito: a pesquisa das fontes populares e a busca por conhecer social e politicamente o país promovem conteúdos que, por sua vez, sugerem ou implicam meios expressivos, ou seja, procedimentos formais; de maneira geral, opera-se aqui a reelaboração consciente de
padrões populares.”

“Zé Celso não inaugura, mas reforça e leva a extremos a postura do diretor-autor, que encena ‘um texto de espetáculo’ em que todos os elementos são eloquentes, relacionando-se uns com os outros. As palavras, o trabalho dos atores, a cenografia, o figurino, a música permutam-se pondo em questão a primazia do texto, a hierarquia clássica segundo a qual o diretor deveria apenas traduzir cenicamente as intenções do dramaturgo. Nos espetáculos de Zé Celso e de outros encenadores dos anos 1960 (...), as diversas artes e técnicas que compõem o evento teatral se superpõem, cruzam-se, confundem-se: a ideia de espetáculo ultrapassa, agora, a de simples e precisa projeção cênica das indicações do texto.”

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